São Paulo, Sábado, 04 de Setembro de 1999
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SHOW CRÍTICA
Burocracia trava "Gal canta Tom Jobim"

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

O cenário é de sonho: o mais belo dos repertórios, a mais bela das vozes, a mais técnica das cantoras. Mas, a julgar por sua estréia -e tudo que aqui vier escrito é revogável, pois se trata tão somente da estréia-, nem todas as qualidades do mundo liberam "Gal Canta Tom Jobim" da burocracia.
É premente uma reflexão sobre Gal, pois é fenômeno que já vem de alguns anos. Ela tem se tornado cada vez menos hábil em interagir -por mero olhar que seja- com seu público, em pactuar emoções, em exprimir vontade de cantar. Atira-se a uma frigideira, ao óleo fervente da técnica pura.
A opção por Tom Jobim concorre, neste momento, para tal efeito. Reagrupar "Desafinado", "Chega de Saudade", "Garota de Ipanema" e "A Felicidade" é reiteração da reiteração do que já está mais que reiterado.
É aí -dialética- que se vê que Gal é, ainda assim, prodigiosa. Consegue fazer justamente de "Garota de Ipanema", a mais surrada das canções brasileiras, um dos momentos inflados do show. Faz-se Gal cantando Gal, modulando versão coquete, rapidinha, respeitável porque menos reverente a João Gilberto que à versão de Astrud Gilberto (Gal, bilíngue, quer os "States", é claro), uma cantora se reportando a outra.
Daí surge a camada compacta de canções de brio técnico -sem emoção, ainda elas-, quando se tem oportunidade de contemplar duelos estéticos entre Gal e intérpretes anteriores que marcaram cada canção -ou seja, além da eterna e insistente adoração por são João Gilberto.
Duelos de titãs acontecem nos confrontos entre Gal e Maysa ("Bonita", único momento possível em que Gracinha, a primeira Gal, só ela e o violão no início, talvez visite o reino da técnica pura), Gal e Dolores Duran ("Por Causa de Você", sensacional), Gal e Elizeth Cardoso (talvez a grande intérprete de Tom, até hoje, que Gal enfrenta com bravura em "Janelas Abertas", "Derradeira Primavera", "Se Todos Fossem Iguais a Você"), o ménage virtual Gal/ Lúcio Alves/Tito Madi (em "Lígia", um brinquedo de pelúcia em sua garganta), Gal e Elis Regina ("Chovendo na Roseira", outro ponto alto).
Irônico é que Gal, eterna vencedora, acabe perdendo hoje o duelo com Elis. "Estrada do Sol" (de Tom e Dolores, que ela própria já gravou, com mais garra, em 79) sucumbe à versão nervosa de Elis, de 71, e "Frevo", que encerra o show, transforma uma bela e esquecida canção de Tom e Vinicius (que Elis gravara em 70) em sub-"Festa do Interior".
Esgares de beleza sem emoção povoam o show para além daí, mas o império da burocracia os inviabiliza. Nada há de menos inventivo que os arranjos bossa-jazz criados por Cristóvão Bastos, que fustigam a voz de Gal mesmo nos melhores momentos, com ápices como a latinidade fuleira imprimida a "Anos Dourados" e os solos instrumentais que quebram a concisão original de "Chega de Saudade", "Desafinado", "Wave", "A Felicidade"...
Detalhes constrangedores que não serão transferidos ao CD são o vestido saco de batatas da cantora (por quê?, sempre por quê?) e a direção "teatral" -iluminação e cenografia são precárias, não parece haver marcação de cena para Gal, cada vez menos à vontade no palco; José Possi Neto, que já fez o mesmo pela própria irmã, Zizi, parece ter dirigido o show numa noite, investido de completo desleixo. Vira questão só de griffe, ouro de tolo.
Problema é que o piloto automático vai se estender à própria cantora, e assim ela vem procedendo há não poucos anos. Como nada é irrevogável, Gal tem o largo tempo de uma temporada -quem sabe aquele que separa uma artista de uma burocrata do comércio- para perseguir o prejuízo. Está tudo ali dentro.


Avaliação:   


Show: Gal Costa Canta Tom Jobim Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, Moema, tel. 0/xx/11/5051-4900) Quando: qui., às 21h30, sex. e sáb., às 22h, e dom., às 20h; até dia 19 Quanto: de R$ 25 a R$ 60

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