São Paulo, Sábado, 04 de Setembro de 1999
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A RESENHA DA SEMANA
O nome do inominável

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Os personagens de Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) estão sempre atrás do desconhecido. Seguem os passos do autor, que se tornou célebre por seus contos fantásticos publicados em revistas populares do gênero, como a "Weird Tales".
Lovecraft nasceu e morreu em Providence, capital do estado de Rhode Island, uma cidade muito pouco fantástica da Nova Inglaterra, apesar das antigas lendas de bruxaria da região. E passou a vida buscando na imaginação e na literatura uma porta que o livrasse do prosaismo das três dimensões em que vivia e servisse de entrada para uma outra cuja verdade, contrastante com a realidade banal à sua volta, fosse tão insuportável e avassaladora que não pudesse ser dita.
A chave dessa porta é o medo. Num ensaio sobre o sobrenatural e o horror, Lovecraft fala de uma "literatura de medo cósmico" em oposição ao simples medo físico: "A emoção mais antiga e forte sentida pelo homem é o medo. E sua forma mais poderosa é o medo do Desconhecido".
Segundo o autor, é o medo que permite escapar à esfera da razão, da consciência e da identidade, numa fusão com o desconhecido, e a idealização de um magma primordial em que as coisas não se diferenciam mais umas das outras, onde não há mais fronteiras entre o subjetivo e o objetivo ou entre as supostas identidades dos indivíduos.
O sobrenatural aqui é o lugar onde não pode haver mais identidade ou razão. E o medo é a ponte que restou de uma comunicação cósmica, o último vestígio de um contato com o desconhecido. Não é de estranhar que esses personagens, assolados pelo medo, estejam sempre no limiar da loucura, e que suas experiências possam muitas vezes prefigurar viagens alucinógenas.
Em muitos dos seus contos, no entanto, essa queda por uma "literatura de medo cósmico" pode acabar reduzindo Lovecraft, numa primeira vista, a uma espécie de simbolista ou gótico retardado, fora do tempo e do lugar, um escritor antiquado cuja linguagem rebuscada não faz mais do que repetir um punhado de clichês quase cômicos sobre monstros inomináveis, seres fantásticos e almas penadas.
Não é o que acontece com "Nas Montanhas da Loucura" (1931), um dos pontos altos de sua obra, um desses raros momentos em que tudo o que podia ser visto como defeito de repente se encaixa com perfeição e faz sentido, explicitando uma originalidade autoral inusitada.
Provavelmente por afinidade temática, a Iluminuras decidiu reunir no mesmo volume, além do conto que dá título à coletânea, três outros -"A Casa Temida", "Os Sonhos na Casa Assombrada" e "O Depoimento de Randolph Carter". Em todos eles, os personagens se perdem em "terríveis pesquisas sobre o desconhecido" à procura de "alguma coisa inominável" que não podem descrever.
Está aí a essência da prosa de Lovecraft. Todo o jogo metafísico dessa literatura consiste em dizer que não é possível dizer, porque é horrível demais.
Imaginar o inimaginável, conceber o inconcebível, dizer o indizível. Diante desse paradoxo implícito em toda literatura fantástica, mas que Lovecraft expõe com uma insistência que lhe é peculiar, só resta uma metáfora precária como possibilidade de representação do irrepresentável. Daí os clichês, que não passam de uma forma de mostrar que o indizível tantas vezes anunciado não pode ser dito: "Dar-lhe um nome a este estágio era mera loucura".
O paradoxo já está na própria atração pelo desconhecido, que leva, uma vez consumada, invariavelmente à morte. Os contos de Lovecraft são a manifestação desesperada dessa impossibilidade. Já que não podem dizer o inominável, gritam essa impossibilidade por meio dos clichês da literatura de horror e seus monstros inconcebíveis.
Para dar a idéia do indizível sem precisar dizê-lo, Lovecraft faz um relato às vezes longo, alimentando sem cessar uma expectativa que acaba dissolvida -ao contrário de Poe, por exemplo, que o autor cita e admira- na decepção dos clichês.
A busca do desconhecido, seja numa expedição científica ao Pólo Sul, seja na investigação febril de uma casa mal-assombrada da Nova Inglaterra, leva à destruição. Uma destruição anunciada por um narrador-sobrevivente, que repete que vai contar sem poder no fundo contar, tamanho é o horror do que viu.
O paradoxo desses contos é que só pode haver representação do desconhecido se ele permanecer desconhecido. Logo não pode haver representação. O medo produzido pela literatura fantástica torna-se a sua metáfora. Ele é o único sentimento que ainda pode nos dar uma vaga idéia do irrepresentável.


Avaliação:    

Livro: Nas Montanhas da Loucura Autor: H.P. Lovecraft Tradução: Celso M. Paciornik Lançamento: Iluminuras Quanto: R$ 24 (217 págs.)


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