São Paulo, sábado, 4 de outubro de 1997.




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O marketing da fé e o sacrifício de Jó

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Mitt Brennender Sorge... "Consumidos pela ansiedade..." -assim começa a encíclica clandestina dirigida aos católicos alemães pelo papa Pio 11 no Domingo de Ramos de 1937, há pouco mais de 60 anos. Severo clamor contra o desmantelamento do poder temporal da Igreja Católica empreendido por Hitler, que, àquela altura, já eliminara todos os adversários do front doméstico.
Apesar do tom libertário em defesa dos direitos humanos, o Vaticano reagia à violação da Concordata de 1933, o contrato de convivência entre Igreja Católica e Estado nazista assinado pelo chanceler Von Pappen e pelo cardeal Pacelli (mais tarde Pio 12), logo depois da assunção de Hitler ao poder.
Se as ardentes angústias tivessem se manifestado antes de janeiro de 33 (quando Hitler tomou o poder), ou logo depois, substituindo-se à capitulação da Concordata, a história da Alemanha ou, quiçá, da Europa talvez pudesse ser escrita de forma diferente.
Abstraindo as hipóteses, a encíclica vale por ela -a despeito da tardia eloquência, o documento celebrizou-se como advertência para as perigosas tangências entre Religião e Estado, entre a esfera espiritual e o poder político. Trágico exemplo da contemporização e da real "politik" face ao totalitarismo.
A religião está nas manchetes. Antes da chegada do papa João Paulo 2º, tivemos o conclave das Assembléias de Deus, e, quando o pontífice partir, começará a reunião dos evangélicos.
Por enquanto, assistimos ao comovente alvoroço do Rio, convertido em Capital Federal da Devoção graças às cuidadosas opções da Santa Sé.
Apesar da consagração da democracia, que, em tese, garante o livre-arbítrio e o direito de descrer, estamos diante de um "revival" teocrático mundial.
As religiões hoje ostentam seus projetos hegemônicos, seus instrumentos e estratégias de poder. A revelação foi substituída pelo marketing da fé. O devoto voltou a ser zelote, o crente só vale enquanto militante. Excetuados talvez os do Extremo Oriente, credos e crenças assemelham-se na ação, mimetizados na aparência e canibalizando-se em guerras santas.
Os EUA, apontados como exemplo do materialismo ateu, sede do diabólico neoliberalismo, aparecem como a mais religiosa das potências industriais, segundo pesquisa do Instituto Gallup.
Seu fundador, George Gallup, inventou, em 1935, uma espécie de seita numerológica segundo a qual as opiniões de um pequeno grupo reproduzem as opiniões do grupo inteiro. A sondagem, de 1995, revelou que 61% dos sobrinhos do Tio Sam acreditam em algum tipo de Deus.
Um em cada três americanos adultos julga que Deus se comunica diretamente com ele. Praticamente todos rezam e acreditam que suas preces são atendidas. E, no entanto, no mundo subdesenvolvido, tão impregnado de religiosidades, eles são chamados de "malditos ianques" -melhor exemplo das precariedades da segmentação não pode haver.
Deus e religião estão na mesma esfera? O Renascimento pretendia disputar com Deus ou reabilitar sua obra-prima, o homem, esmagado pela Igreja de então? As proposições dos iluministas franceses materializadas pela Revolução dirigiam-se contra Deus ou contra o poder religioso, o clericalismo?
Quando o jornalista Boris Casoy, em 1985, véspera do pleito para a Prefeitura de São Paulo, perguntou ao candidato Fernando Henrique Cardoso se acreditava em Deus, pretendia avançar no plano das indagações filosóficas ou estigmatizar um candidato como ateu?
Aqui, o cerne da questão: se, no plano da política secular, os indecisos são os mais cortejados pelos candidatos, por que, no plano da política espiritual, a dúvida vale menos do que a certeza? Os inconformados que buscam, os não-alinhados que rejeitam as aparências de resposta -agora qualificados como "indiferentes"- devem ser considerados como párias?
Questionar não é sinônimo de falta de convicção, ao contrário, é a corajosa determinação de não sossegar. Se os contestadores são perigosos, como proclama o cardeal do Rio de Janeiro, voltamos aos tempos em que o privilégio do ceticismo era punido como heresia.
Apresentando-se como "xerox do papa", d. Eugênio Sales substitui a tolerância pela arrogância e faz lembrar velhas atuações.
O que nos leva a um dos mais antigos mitos literários, o drama de Jó, aquele que passou pelas mais difíceis provações para ser testado na fidelidade a Deus. O Livro de Jó (escrito provavelmente 500 anos antes da era comum) é uma extraordinária peça literária que, no Velho Testamento, se localiza perto de outras como os Salmos, Provérbios e Cantares de Salomão. É a penosa história do justo sofredor, aquele que, em meio às chagas e ao esterco, busca o sentido da vida.
O tema está na essência da tragédia grega em que o homem desafia os deuses, passa pelos Mistérios da Idade Média, chega ao "Candide" de Voltaire, aos românticos oitocentistas e continua por meio dos céticos deste século.
O verbete do "Dicionário dos Mitos Literários" (UnB - José Olympio, 1997) é um instigante repositório de pistas sobre esse que se converteu em símbolo da condição humana. Ora resignado aos desígnios de um Deus insensível, ora revoltado, interpelante e, afinal, triunfante, Jó evoca a perplexidade. É o antifundamentalista por excelência.
Segundo a mesma fonte, em 1940, já em plena guerra (que os signatários da Concordata com Hitler não conseguiram conjurar), um jovem polonês de nome Karol Wojtila, antes mesmo de fazer a sua opção pela vida religiosa, também debruçou-se sobre o drama de Jó. Pouco depois, começaria o Holocausto em que milhões como Jó cobraram de Deus o seu descaso.
Jó caiu no esquecimento, não cabe no esquema triunfalista, destoa nos espetáculos religiosos hoje em voga. Os megaatos fazem bem àqueles olhos que se afeiçoaram às quantidades. Podem tocar algumas cordas de algumas sensibilidades afinadas para as estatísticas. Mas essa movimentação de massas, no fundo, só reforça a sensação de que tanto as religiões reveladas como as seitas inventadas, a despeito dos respectivos fervores, estão em pleno processo de laicização. Combatem o materialismo, mas idolatram os resultados.
Deus já esteve nos corações e nas mentes, agora joga nos estádios. No princípio, foi o verbo. Agora, véspera do apocalipse milenar, é a ação. Deifica-se a política, sacralizam-se as plataformas eleitorais, consagra-se a arena do mercado. E, assim, consumidos pela ansiedade -Mitt Brennender Sorge-, assiste-se a uma nova concordata, tão penosa quanto a de 33, em que Jó será o sacrificado.



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