São Paulo, sexta, 4 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA
Cineasta passa a limpo seu amor pelo Brasil

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

"Tudo É Brasil" ganhou no último Festival de Brasília o ambíguo prêmio de "Melhor Colagem Antropofágica". Talvez fosse uma maneira de o júri dizer que este filme de Rogério Sganzerla merecia ser premiado, mas não sabia em que categoria enquadrá-lo.
Para não correr o risco de ser convencional e oferecer um simples Prêmio Especial do Júri, optou-se por essa formulação obscura, que não ajuda em nada a compreender o filme, pelo contrário, atrapalha um bocado.
Trata-se de um filme de montagem, em que Sganzerla parte de uma antiga obsessão: a passagem de Orson Welles pelo Brasil, nos anos 40, e a realização de dois episódios que permaneceram perdidos durante décadas.
Só nos anos 90 o material desprezado pela RKO foi encontrado e deu ocasião a um documentário (belíssimo, no mais) sobre a aventura latino-americana de Welles.
Sganzerla ocupa-se do tema há décadas, tendo inclusive realizado um documentário de ficção sobre o tema ("Nem Tudo É Verdade", de 1986).
"Tudo É Brasil" parece apontar para uma mudança de postura do diretor em relação ao episódio. Até aqui, a estadia de Welles entre nós parecia sintoma de um fracasso que atingia simultaneamente um dos maiores gênios do cinema (naquele momento delineia-se o bloqueio de Hollywood a seu trabalho, já que, ao mesmo tempo, "Soberba" era desfigurado na montagem).
Por aqui, a hipótese de Welles estar captando um Brasil popular, e não-oficial, também não estaria sendo vista com bons olhos pelo governo Vargas.
O reencontro das imagens, sobretudo o dos episódios dos jangadeiros, pode ter determinado parcialmente a mudança de enfoque. A principal mudança talvez venha, porém, de outra parte.
Sua paixão pela cultura popular brasileira -partilhada por Júlio Bressane- e o desejo de interpretá-la também vêm de longe. A revisão da chanchada, assim como a defesa de José Mojica Marins, deve muito a ambos, por exemplo.
Mas o que antes podia ser visto como um olhar pessimista a uma cultura da impossibilidade aqui se transforma um pouco. Trata-se de encontrar valores, de Grande Otelo a João Gilberto, equalizando, pela montagem, o culto e o popular, de buscar a permanência dos encantos dos anos 40 nos anos 90, de perceber na continuidade de um modo de vida -apesar de todas as atrapalhações que têm vitimado o Rio desde 1960- a exuberância criativa de um povo que tem na autonegação uma espécie de esporte favorito.
Esse Brasil não é, obviamente, oficial, nem passa pelas mazelas da política. Sganzerla vai atrás de imagens que, mesmo quando já vistas, adquirem um outro sentido. Relaciona-as com sons que, mesmo quando já escutados, agregam novos sentidos no contato da imagem.
É como se a tristeza pelo tesouro perdido de Welles se transformasse em euforia pelo seu reencontro. Não se trata de esperar, é claro, por um filme tolamente otimista, e sim por um filme apaixonado pelos seus dois objetos: Brasil e Welles, agora "limpo" (parcialmente, em todo caso) da catástrofe pessoal que foi a passagem do cineasta pelo Brasil, na qual Sganzerla via um signo da catástrofe nacional.
Não seria demais lembrar que a obra assinala o reencontro de Rogério Sganzerla com Sylvio Renoldi, o mágico montador de "O Bandido da Luz Vermelha". Nas suas mãos, parece que as idéias do diretor deixam de ser abstrações e adquirem concretude, como aqui.
²

Filme: Tudo É Brasil Produção: Brasil, 1998 Direção: Rogério Sganzerla Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 4


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.