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MARCELO COELHO
Sobre os prazeres de usar xampu
Em qualquer assunto, o
pessimismo é sempre recomendável. Tende a ser mais estético e elegante. Mesmo sem querer, contudo, vemos o futuro com
uma íntima confiança -tão íntima que não nos damos conta dela.
Claro, existem ameaças em toda parte, de Bush ao buraco na
camada de ozônio, das armas
químicas do Iraque às balas perdidas por aqui mesmo. É mais ou
menos certo, entretanto, que nossos filhos e netos vão viver mais
tempo do que nós; que vão sofrer
menos no dentista, que vá haver
vacinas para todos ou que bens de
consumo e alimentos, diga-se o
que quiser, vão ficar mais baratos
ao longo do tempo.
Não sei se o argumento acima
convence muito. Pode-se ser otimista quanto ao desenvolvimento da tecnologia e, ainda assim,
pessimista quanto ao resto. Mas
penso numa outra espécie de otimismo, um otimismo inconsciente, que toma conta da maioria de
nós sem que estejamos pensando
no que será o mundo daqui a dez
ou cem anos.
Veja-se o caso da Amazônia,
para voltar a falar desse lugar onde nunca estive. Há uma crença
geral de que ali repousam riquezas jamais vistas. A cura da Aids,
sem dúvida, esconde-se na seiva
de alguma erva ignorada. Um
amigo disse, há tempos, que, além
da cura da Aids, deve haver na
selva micróbios e insetos muito
piores do que a Aids... mas disso
ninguém tem medo.
E lembremos que uma das contribuições mais significativas da
flora amazônica para a humanidade (além do guaraná, cujos
efeitos são benéficos, mas não milagrosos) é o curare, que não cura
nada. Cura-nos, no máximo, do
desprazer de convivermos com
nossos desafetos.
Não conheço maior otimismo
-nem mais automático- do
que o do consumidor médio num
supermercado. Eu, por exemplo,
sempre acredito nos rótulos de
xampu. Nos que prometem estancar a queda dos cabelos, em primeiro lugar; nos revitalizantes;
nos que atuam sobre as pontas;
nos que nutrem a raiz... são todos
irresistíveis.
Posso até dizer que, a rigor, não
acredito neles. Mas não importa,
pois ajo como se acreditasse. Sigo
com razoável disciplina as instruções do rótulo, deixo-me guiar pelas cores do produto e, sobretudo,
pelas óbvias analogias que se traçam entre os componentes da fórmula e o efeito capilar anunciado.
Por exemplo: um xampu com limão é indicado para cabelos oleosos. Ninguém que tenha cabelos
secos pensaria em usar limão; sugere-se amêndoa ou gergelim.
Passo por cima da questão de
saber se meus cabelos são de fato
secos, oleosos ou normais. Espero
que sejam normais. Não importa:
nas prateleiras do supermercado,
há variantes novas como a dos
oleosos na raiz e secos nas pontas,
ou a dos cabelos que ficam oleosos
no decorrer do dia.
Que dúvidas! Que combinações
possíveis entre xampus e condicionadores, contraditórios e concordantes, cruzando-se como
coordenadas e abscissas! Que química!
Coco ou pêssego, mamão ou damasco? Vai-se comprar xampu
como se vai a uma feira livre. Até
coisas mais fortes, como leite, gema de ovo, "óleo de oliva" (não é
azeite?) e, para maior impacto, o
tutano de boi, são apresentadas
como benéficas ao couro cabeludo.
Claro que em tudo isso há a
idéia de alimento, de nutrição
-como se o cabelo devesse ser engordado, azeitado, fortificado,
encerado, a exemplo de um bezerro, de um vaso de plantas, de uma
pasta de couro ou de um piso de
madeira.
Perdeu intensidade, contudo, a
moda dos óleos, das frutas, dos cereais e dos iogurtes. Passou-se ao
"metalimento", ao alimento mais
sutil dos temperos: menta, tomilho e alecrim, por exemplo, acrescentam notas de vivacidade, eu
diria quase de inteligência, ao
nosso banho. O acicate da pimenta-rosa, da canela e do açafrão,
quem sabe, vá despertar para a
vida as áreas de minha pele que
já se resignavam ao sono eterno
da calvície.
Gosto mais, e sempre, das substâncias amazônicas. Certa marca
de xampu apresenta no rótulo,
triunfante, um cacique enfeitado
de penas de arara, como se cabelo
não bastasse. Copaíba, guaraná,
raspa de joá e jurubeba: não sei se
isso faz nascer cabelo ou se é um
coquetel afrodisíaco.
Que tal crajiru, taiuiá e bardana? Melhor o mais simples: apostei no jaborandi. Tentei ser coerente: comprei xampu e condicionador à base da mesma substância. Não eram da mesma marca,
mas seguiam o padrão desejado,
a saber, um verde transparente,
de caco de garrafa, no xampu, e
sua versão esmaecida, leitosa,
mais gorda, no condicionador.
Nunca vi um pé de jaborandi,
não sei o cheiro que tem; só sei
que o xampu tinha um cheiro de
amêndoa, um pouco mais vivo,
inquieto e silvestre. Abri o condicionador: veio um aroma um
tanto abafado de limão e grama.
Senti-me vítima, é claro, de
uma ilusão. Que o jaborandi não
me fará menos careca eu já desconfiava. Mas meu ceticismo aumentou: existirá jaborandi no
xampu? Jaborandi real? E ainda:
existirá o jaborandi?
Li outro dia que diversas substâncias amazônicas já viraram
marca registrada nos países desenvolvidos, de modo que, para
usar em rótulos as tantas e tão
promissoras denominações da
mata, será preciso pagar royalties
para alguma multinacional. Mas
não acreditei muito nisso tampouco.
A Amazônia, afinal, continua
nossa. Devastam-na; não sou pessimista. Não enquanto ainda tiver cabelo na cabeça -a cobrir de xampu, de condicionador, de flores, de ervas e de crenças.
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