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São Paulo, quarta-feira, 05 de fevereiro de 2003

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MARCELO COELHO

Sobre os prazeres de usar xampu

Em qualquer assunto, o pessimismo é sempre recomendável. Tende a ser mais estético e elegante. Mesmo sem querer, contudo, vemos o futuro com uma íntima confiança -tão íntima que não nos damos conta dela.
Claro, existem ameaças em toda parte, de Bush ao buraco na camada de ozônio, das armas químicas do Iraque às balas perdidas por aqui mesmo. É mais ou menos certo, entretanto, que nossos filhos e netos vão viver mais tempo do que nós; que vão sofrer menos no dentista, que vá haver vacinas para todos ou que bens de consumo e alimentos, diga-se o que quiser, vão ficar mais baratos ao longo do tempo.
Não sei se o argumento acima convence muito. Pode-se ser otimista quanto ao desenvolvimento da tecnologia e, ainda assim, pessimista quanto ao resto. Mas penso numa outra espécie de otimismo, um otimismo inconsciente, que toma conta da maioria de nós sem que estejamos pensando no que será o mundo daqui a dez ou cem anos.
Veja-se o caso da Amazônia, para voltar a falar desse lugar onde nunca estive. Há uma crença geral de que ali repousam riquezas jamais vistas. A cura da Aids, sem dúvida, esconde-se na seiva de alguma erva ignorada. Um amigo disse, há tempos, que, além da cura da Aids, deve haver na selva micróbios e insetos muito piores do que a Aids... mas disso ninguém tem medo.
E lembremos que uma das contribuições mais significativas da flora amazônica para a humanidade (além do guaraná, cujos efeitos são benéficos, mas não milagrosos) é o curare, que não cura nada. Cura-nos, no máximo, do desprazer de convivermos com nossos desafetos.
Não conheço maior otimismo -nem mais automático- do que o do consumidor médio num supermercado. Eu, por exemplo, sempre acredito nos rótulos de xampu. Nos que prometem estancar a queda dos cabelos, em primeiro lugar; nos revitalizantes; nos que atuam sobre as pontas; nos que nutrem a raiz... são todos irresistíveis.
Posso até dizer que, a rigor, não acredito neles. Mas não importa, pois ajo como se acreditasse. Sigo com razoável disciplina as instruções do rótulo, deixo-me guiar pelas cores do produto e, sobretudo, pelas óbvias analogias que se traçam entre os componentes da fórmula e o efeito capilar anunciado.
Por exemplo: um xampu com limão é indicado para cabelos oleosos. Ninguém que tenha cabelos secos pensaria em usar limão; sugere-se amêndoa ou gergelim.
Passo por cima da questão de saber se meus cabelos são de fato secos, oleosos ou normais. Espero que sejam normais. Não importa: nas prateleiras do supermercado, há variantes novas como a dos oleosos na raiz e secos nas pontas, ou a dos cabelos que ficam oleosos no decorrer do dia.
Que dúvidas! Que combinações possíveis entre xampus e condicionadores, contraditórios e concordantes, cruzando-se como coordenadas e abscissas! Que química!
Coco ou pêssego, mamão ou damasco? Vai-se comprar xampu como se vai a uma feira livre. Até coisas mais fortes, como leite, gema de ovo, "óleo de oliva" (não é azeite?) e, para maior impacto, o tutano de boi, são apresentadas como benéficas ao couro cabeludo.
Claro que em tudo isso há a idéia de alimento, de nutrição -como se o cabelo devesse ser engordado, azeitado, fortificado, encerado, a exemplo de um bezerro, de um vaso de plantas, de uma pasta de couro ou de um piso de madeira.
Perdeu intensidade, contudo, a moda dos óleos, das frutas, dos cereais e dos iogurtes. Passou-se ao "metalimento", ao alimento mais sutil dos temperos: menta, tomilho e alecrim, por exemplo, acrescentam notas de vivacidade, eu diria quase de inteligência, ao nosso banho. O acicate da pimenta-rosa, da canela e do açafrão, quem sabe, vá despertar para a vida as áreas de minha pele que já se resignavam ao sono eterno da calvície.
Gosto mais, e sempre, das substâncias amazônicas. Certa marca de xampu apresenta no rótulo, triunfante, um cacique enfeitado de penas de arara, como se cabelo não bastasse. Copaíba, guaraná, raspa de joá e jurubeba: não sei se isso faz nascer cabelo ou se é um coquetel afrodisíaco.
Que tal crajiru, taiuiá e bardana? Melhor o mais simples: apostei no jaborandi. Tentei ser coerente: comprei xampu e condicionador à base da mesma substância. Não eram da mesma marca, mas seguiam o padrão desejado, a saber, um verde transparente, de caco de garrafa, no xampu, e sua versão esmaecida, leitosa, mais gorda, no condicionador.
Nunca vi um pé de jaborandi, não sei o cheiro que tem; só sei que o xampu tinha um cheiro de amêndoa, um pouco mais vivo, inquieto e silvestre. Abri o condicionador: veio um aroma um tanto abafado de limão e grama.
Senti-me vítima, é claro, de uma ilusão. Que o jaborandi não me fará menos careca eu já desconfiava. Mas meu ceticismo aumentou: existirá jaborandi no xampu? Jaborandi real? E ainda: existirá o jaborandi?
Li outro dia que diversas substâncias amazônicas já viraram marca registrada nos países desenvolvidos, de modo que, para usar em rótulos as tantas e tão promissoras denominações da mata, será preciso pagar royalties para alguma multinacional. Mas não acreditei muito nisso tampouco.
A Amazônia, afinal, continua nossa. Devastam-na; não sou pessimista. Não enquanto ainda tiver cabelo na cabeça -a cobrir de xampu, de condicionador, de flores, de ervas e de crenças.


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