São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004

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MEMÓRIA

À espera do reconhecimento na "ingrata posteridade"

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Qual a boa metáfora para descrevê-la: uma pluma? Uma flor delicada que, por milagre, anda? Um cristal frágil? Sua voz faz-se carícia tímida. Para onde foi a Hilda Hilst desbocada, de tom enérgico, manejando palavrões que abalaram bem-educados e bem pensantes? Aos 70 anos, a mais bela e a mais terrível das bruxas "vamp" se transformou numa fada. Ela irradia felicidade enternecida. Está grata pela homenagem, o que pode ser bonito e comovente. Na verdade, não é justo. Porque foi ela quem carreou, para a língua e para a cultura brasileiras, um universo de belezas inquietantes, novo, único, indo buscar nas carnes, nas vísceras, interrogações metafísicas em modos antes ignorados. A dívida não é dela, é nossa para com ela."
Isto eu redigia no momento da exposição que o Sesc Pompéia consagrou a Hilda Hilst, em 2000. Hilda Hilst já estava frágil, naqueles tempos. Não escrevia mais. Havia cessado as palavras que correram aos borbotões de suas mãos, a força lírica opulenta e cheia de contradições, despejando uma vida latejante, politicamente incorreta, perturbadora, visceral, sensual, sobre o papel.

"Fina faca"
Hilda Hilst percebia o mundo sem os moralismos tristes de nosso tempo. A sexualidade que a inspirava nunca se tornava pornografia, mesmo se ela às vezes, por razões esdrúxulas, quisesse fazer-se pornográfica. É que tudo vinha transformado por uma pulsão interrogativa, orgânica e metafísica. A morte, a "fina faca", como diz num de seus versos, era parte dessas frases que surgiam em fluxos.
Neste momento, momento de sua morte, Hilda Hilst, escritora imensa, ainda não foi plenamente avaliada em sua estatura de gigante. Talvez, mesmo, nossos tempos não sejam exatamente os melhores para compreendê-la de fato. Há a posteridade, está claro, essa posteridade que Hilda Hilst via como ingrata, já que o devido reconhecimento que reclamava não chegou, em vida, como ela queria. Esperemos que venha, mais do que agora, em escala ampla. O lema fatídico da escritora: "É mais tarde do que supões", no entanto, turva tudo de pessimismo.
Seus contatos com o além, suas leituras de pitonisa em diálogo com os mortos, eram partes dos seus mistérios. Para onde foi Hilda Hilst? Impossível dizer. Mas sabemos onde está: nas páginas numerosas do que escreveu, e que continuam a vibrar, tirando-nos de nossas estreitezas, desencadeando as mais belas, mais fecundas e mais terríveis interrogações.


Jorge Coli é historiador da arte

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