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MARCELO COELHO
A organização complicada do simples ato de voar
Simpatizo com aeroportos.
Talvez porque não os frequente muito. Para quem usa a
ponte aérea várias vezes por semana aquilo deve ser de enlouquecer. Não bastassem as filas, a
espera, a rotina, há um monte de
formalidades insuportáveis.
Por exemplo. Aquele cartão de
embarque, grande demais para
caber no bolso, e que não sei se
posso dobrar; a passagem, com
várias páginas, redigida como um
contrato; as etiquetas, uma para
cada mala, que a atendente gruda na passagem, e não sei o que
me dá mais medo, se perder a bagagem ou a etiqueta.
Há tempos fui ao Rio num vôo
supereconômico e achei bem melhor. Tudo deveria mesmo ser
simples como passar numa catraca. Deram-me um tíquete como
se fosse uma entradinha de cinema, tirado ali mesmo na caixa registradora, e bai, bai. Nenhuma
falação a respeito do prazer que
tinham em me ter a bordo.
Com perdão do trocadilho da
última frase. Não, não sinto prazer especial em estar a bordo de
nenhuma "aeronave", como eles
gostam de dizer. Mas aeroportos
são outra conversa.
Chego com muita antecedência,
e gosto de passear por aquelas lojas na certeza de que nada vou
comprar. O corredor de Congonhas, por exemplo, forma para
mim uma espécie de shopping
sem consumo; as vitrines parecem
estar ali com o único propósito de
me fazer passar o tempo.
Outra coisa agradável dos aeroportos é que neles se experimenta
certa igualdade social. Prenuncia-se um pouco o ambiente dos
países desenvolvidos que iremos
visitar. Diferenciados pela nacionalidade, pelos distintos graus de
informação a respeito do embarque, pelo trajeto, pela companhia
aérea, até mesmo pela "classe", se
turística ou executiva, o fato é que
todos partilhamos de uma condição econômica, de um status social comum. É o que faz a aeromoça nos oferecer, durante o vôo,
uma taça de vinho branco (ruim
ou bom, que importa?) e não
cynar, rabo-de-galo ou tubaína.
Já é socialismo, ou está perto disso.
Pelo menos, filas não faltam.
Obrigam-nos a uma virtude que,
em nosso país, costuma ser típica
das classes mais baixas: a paciência. Mais que paciência, passividade. Ninguém duvida que, num
aeroporto, é melhor obedecer.
As fotos de Claudia Jaguaribe,
na mostra "Aeroporto" (Instituto
Tomie Ohtake), iluminam de modo emocionante esse ambiente de
aglomeração e de ordem, de formalidade e pressa, de urgência e
de cerimônia a que nos submetemos antes de embarcar.
São fotos de tamanhos diferentes, criando um efeito de "instalação" nas paredes do centro cultural. Assim, vemos uma sequência
de retratos de aeromoças (ou melhor, de balconistas de companhia aérea), tomando a metade
inferior de uma parede. Há rostos
de perfil, de frente, de costas, levemente inclinados, às vezes olhando para o alto. Mas o que chama
a atenção, sobretudo, é o penteado das moças, quase sempre um
coquezinho impecável, emblema
de limpeza, capricho, disciplina e
concisão.
Por cima da fileira de aeromoças, surgem quatro fotos bem
maiores; em duas delas, um
aviãozinho mal se distingue num
céu portentoso, cheio de nuvens
grandes como continentes. As inclinações dos coques parecem movimentos de decolagem; e cada
rosto se revela tão artificial quanto o vôo daquela intrépida máquina de aço.
Outra foto notável é a de uma
pista de pouso, tirada bem de perto, em tons de sépia e de laranja,
como se a pista fosse de terra e
não de asfalto. Flechas, letras e
números cabalísticos estão pintados ali, lembrando os documentários do gênero "eram os deuses
astronautas?". Algum mistério se
esconde nesses sinais, que só os pilotos podem ler. Para nós, evocam
justamente a mistura de incompreensibilidade e ordem, entre razão e incerteza, que experimentamos a cada viagem de avião.
Mas Claudia Jaguaribe destaca
sobretudo o tempo e o espaço vazios: as salas de espera, os corredores de metal, as mesas de fórmica das lanchonetes, os passageiros
tentando divisar as malas na curva que faz a esteira rolante de
borracha, a explosão de um vaso
de flores sobre o balcão da companhia.
Não há tristeza, muito menos
sugestões patéticas, nessas imagens. É como se a desumanidade
do aeroporto fosse vencida a cada
foto; não porque o "pitoresco", o
"humano", o "anedótico" venham a ser privilegiados pela artista, mas sim porque ela investe
precisamente no contrário disso.
Há uma foto em que se mostra,
nas cores mais vibrantes, o interior irreconhecível de uma maleta
de mão, tal como aparece nos
aparelhos de raios X da polícia.
"Objetos de uso pessoal", para
usar a terminologia aduaneira,
surgem como que radioativos
também: uma carteira, um vidro
de perfume, um par de óculos,
uma tesourinha de unha sobrevivem, deturpados, embolados e
perdidos, ao processo de vistoria e
de transporte pelo qual passaram.
Como nós.
Na outra sala da exposição,
projeta-se o filme de uma gigantesca turbina de avião girando
em silêncio. O que há, na verdade,
é uma ambientação sonora muito leve, feita de sons típicos de aeroporto (como as mensagens da
Infraero ou o vaivém das portas
automáticas), só que ouvidos
muito de longe; do alto; pensei
que talvez os anjos, com um sorriso, percebam desse modo toda a
nossa correria, todos os esforços
humanos, toda a ciência e organização implacável que nos custa o
simples ato de voar.
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