UOL


São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

A organização complicada do simples ato de voar

Simpatizo com aeroportos. Talvez porque não os frequente muito. Para quem usa a ponte aérea várias vezes por semana aquilo deve ser de enlouquecer. Não bastassem as filas, a espera, a rotina, há um monte de formalidades insuportáveis.
Por exemplo. Aquele cartão de embarque, grande demais para caber no bolso, e que não sei se posso dobrar; a passagem, com várias páginas, redigida como um contrato; as etiquetas, uma para cada mala, que a atendente gruda na passagem, e não sei o que me dá mais medo, se perder a bagagem ou a etiqueta.
Há tempos fui ao Rio num vôo supereconômico e achei bem melhor. Tudo deveria mesmo ser simples como passar numa catraca. Deram-me um tíquete como se fosse uma entradinha de cinema, tirado ali mesmo na caixa registradora, e bai, bai. Nenhuma falação a respeito do prazer que tinham em me ter a bordo.
Com perdão do trocadilho da última frase. Não, não sinto prazer especial em estar a bordo de nenhuma "aeronave", como eles gostam de dizer. Mas aeroportos são outra conversa.
Chego com muita antecedência, e gosto de passear por aquelas lojas na certeza de que nada vou comprar. O corredor de Congonhas, por exemplo, forma para mim uma espécie de shopping sem consumo; as vitrines parecem estar ali com o único propósito de me fazer passar o tempo.
Outra coisa agradável dos aeroportos é que neles se experimenta certa igualdade social. Prenuncia-se um pouco o ambiente dos países desenvolvidos que iremos visitar. Diferenciados pela nacionalidade, pelos distintos graus de informação a respeito do embarque, pelo trajeto, pela companhia aérea, até mesmo pela "classe", se turística ou executiva, o fato é que todos partilhamos de uma condição econômica, de um status social comum. É o que faz a aeromoça nos oferecer, durante o vôo, uma taça de vinho branco (ruim ou bom, que importa?) e não cynar, rabo-de-galo ou tubaína. Já é socialismo, ou está perto disso.
Pelo menos, filas não faltam. Obrigam-nos a uma virtude que, em nosso país, costuma ser típica das classes mais baixas: a paciência. Mais que paciência, passividade. Ninguém duvida que, num aeroporto, é melhor obedecer.
As fotos de Claudia Jaguaribe, na mostra "Aeroporto" (Instituto Tomie Ohtake), iluminam de modo emocionante esse ambiente de aglomeração e de ordem, de formalidade e pressa, de urgência e de cerimônia a que nos submetemos antes de embarcar.
São fotos de tamanhos diferentes, criando um efeito de "instalação" nas paredes do centro cultural. Assim, vemos uma sequência de retratos de aeromoças (ou melhor, de balconistas de companhia aérea), tomando a metade inferior de uma parede. Há rostos de perfil, de frente, de costas, levemente inclinados, às vezes olhando para o alto. Mas o que chama a atenção, sobretudo, é o penteado das moças, quase sempre um coquezinho impecável, emblema de limpeza, capricho, disciplina e concisão.
Por cima da fileira de aeromoças, surgem quatro fotos bem maiores; em duas delas, um aviãozinho mal se distingue num céu portentoso, cheio de nuvens grandes como continentes. As inclinações dos coques parecem movimentos de decolagem; e cada rosto se revela tão artificial quanto o vôo daquela intrépida máquina de aço.
Outra foto notável é a de uma pista de pouso, tirada bem de perto, em tons de sépia e de laranja, como se a pista fosse de terra e não de asfalto. Flechas, letras e números cabalísticos estão pintados ali, lembrando os documentários do gênero "eram os deuses astronautas?". Algum mistério se esconde nesses sinais, que só os pilotos podem ler. Para nós, evocam justamente a mistura de incompreensibilidade e ordem, entre razão e incerteza, que experimentamos a cada viagem de avião.
Mas Claudia Jaguaribe destaca sobretudo o tempo e o espaço vazios: as salas de espera, os corredores de metal, as mesas de fórmica das lanchonetes, os passageiros tentando divisar as malas na curva que faz a esteira rolante de borracha, a explosão de um vaso de flores sobre o balcão da companhia.
Não há tristeza, muito menos sugestões patéticas, nessas imagens. É como se a desumanidade do aeroporto fosse vencida a cada foto; não porque o "pitoresco", o "humano", o "anedótico" venham a ser privilegiados pela artista, mas sim porque ela investe precisamente no contrário disso.
Há uma foto em que se mostra, nas cores mais vibrantes, o interior irreconhecível de uma maleta de mão, tal como aparece nos aparelhos de raios X da polícia. "Objetos de uso pessoal", para usar a terminologia aduaneira, surgem como que radioativos também: uma carteira, um vidro de perfume, um par de óculos, uma tesourinha de unha sobrevivem, deturpados, embolados e perdidos, ao processo de vistoria e de transporte pelo qual passaram. Como nós.
Na outra sala da exposição, projeta-se o filme de uma gigantesca turbina de avião girando em silêncio. O que há, na verdade, é uma ambientação sonora muito leve, feita de sons típicos de aeroporto (como as mensagens da Infraero ou o vaivém das portas automáticas), só que ouvidos muito de longe; do alto; pensei que talvez os anjos, com um sorriso, percebam desse modo toda a nossa correria, todos os esforços humanos, toda a ciência e organização implacável que nos custa o simples ato de voar.


Texto Anterior: Especial: Festival exibe lirismo de Joaquim Pedro
Próximo Texto: Música: Minimalismo para as massas
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.