São Paulo, quinta, 5 de março de 1998

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Prometeu e Epimeteu nos Trópicos

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Todo ano o ciclo se repete. Desabamentos, enchentes, incêndios, blecautes, desmoronamentos, erosão, queimadas, epidemias, acidentes de toda sorte -a enxurrada de calamidades que assola o verão brasileiro tem a regularidade e a fatalidade das estações do clima. É como o surgimento de goteiras nos prédios de Oscar Niemeyer: a única dúvida é saber aonde exatamente elas aparecerão. Desde que me dou por gente é assim.
O que fazer? Cada um, é natural, faz sua parte. As oposições acusam, as autoridades se explicam. Os que estão no poder prometem agir e os que o pleiteiam juram que com eles tudo será diferente. É da lógica das calamidades que nos afligem que sempre haja um culpado que se possa incriminar e odiar. As "contradições do capitalismo" caíram em desuso, mas aí está uma nova safra de bodes expiatórios -"globalização", "neoliberalismo", "elite covarde"- para não deixar a peteca da indignação cair.
De minha parte, sigo a recomendação do poeta Drummond e me abstenho de "sofismar quem tem razão entre sem-razões deste instante". Não é de hoje nem de ontem que uma alegre e trágica imprevidência parece haver se constituído em verdadeiro modo de vida entre nós e duvido que alguma categoria ideológica ou sociológica tenha o dom de desvendar o segredo de sua origem e perenidade na convivência brasileira.
Mitologia por mitologia, a fábula de Prometeu e Epimeteu me parece conter mais poesia e verdade sobre a nossa sina e condição do que a pororoca amazônica de incriminações oportunas e atribuições cruzadas de culpa que desaguam diariamente no leito da imprensa. É a ponta que me cabe em nossa tragicomédia de erros: um rodapé à margem da fúria sagrada dos justiceiros.
As versões da fábula e os detalhes da narrativa variam de autor para autor, mas o sentido geral da trama é comum. Prometeu e Epimeteu são dois irmãos semideuses, primos de Zeus na linhagem dos titãs, a quem as divindades do Olimpo atribuíram a tarefa de criar a humanidade a partir do barro. A criatura altamente contraditória que resultou da encomenda reflete a grandeza e a fraqueza peculiares de cada um dos criadores.
Prometeu e Epimeteu representam pólos extremos e simétricos da relação entre o pensar e o agir. Os nomes falam por si. Prometeu em grego significa "pré-pensador": ele é o que pensa antes de agir. Epimeteu, por sua vez, é o "pós-pensador": ele é o que age antes de pensar. Enquanto um calcula, delibera e busca prever e domar o futuro, o outro se entrega ao impulso, desfruta e busca tirar do momento tudo o que ele pode oferecer de melhor.
A figura de Prometeu é heróica. Ao completar a tarefa da criação, ele bandeia de time: torna-se um campeão das causas humanas e se alia aos mortais na luta contra a opressão e avareza dos deuses. (Não foi à toa que Marx fez dele o grande herói de sua tese de doutorado). O principal feito de Prometeu foi surrupiar o domínio do fogo da guarda de Zeus. Armado de ousadia e astúcia, ele colocou a luz do saber, o poder da tecnologia e o segredo da transmutação do instinto em inteligência à disposição do animal humano.
Zeus, é claro, não gostou da insolência. Ordenou que se moldasse a partir do barro uma mulher esplêndida e irresistível -Pandora ("todos os encantos")-, para que ela seduzisse Prometeu e oferecesse a ele uma caixa nupcial contendo as mais valiosas prendas do Olimpo. A armadilha-vingança de Zeus, porém, não acertou o alvo. Prometeu, sagaz, fez que não era com ele, e os charmes de Pandora acabaram cativando o coração de Epimeteu que, sem dar ouvidos aos alertas do irmão, logo se apaixonou e casou com ela.
Foi por meio de Epimeteu, portanto, que o castigo de Prometeu atingiu a humanidade. Ele abre impetuoso a tampa da caixa de Pandora e do presente nupcial dos deuses escapa e se espalha pelo mundo uma sucessão infindável de males e infortúnios que passam a afligir os homens. Quando Epimeteu se dá conta do desastre e consegue recolocar a tampa, é tarde. Só a esperança restou no fundo da caixa para consolar os homens e amenizar suas penas.
Epimeteu penou, mas a pena do herói-rebelde Prometeu não ficou por menos. Ele foi acorrentado a um rochedo solitário no Cáucaso e, por ordem de Zeus, condenado por 30 mil anos ao tormento de ter o fígado devorado por uma águia. Terror perpétuo. A cada noite o fígado de Prometeu se regenerava de modo a que a ave pudesse novamente servir-se dele no dia seguinte.
Essa, em essência, a fábula dos dois irmãos mitológicos. Permita-me agora, leitor, à guisa de moral da história, reproduzir a magnífica interpretação do mito sugerida pelo filósofo renascentista Francis Bacon.
"Os seguidores de Epimeteu", observa Bacon, "são imprevidentes, pouco enxergam à frente e preferem o que seja aprazível no presente; daí que vivam premidos por numerosos apertos e calamidades contra os quais pelejam de modo quase contínuo; nos intervalos, entretanto, eles saciam os seus desejos e, por falta de um melhor conhecimento das coisas, alimentam o seu espírito com esperanças vãs e deleitam-se e suavizam as misérias da vida como em sonhos prazenteiros".
"Já os adeptos de Prometeu", pondera o filósofo, "são homens prudentes e sóbrios que miram o futuro e, cheios de cautela, antecipam e previnem muitas calamidades e infortúnios; ocorre, porém, que essa índole alerta e previdente é acompanhada da privação de numerosos prazeres e da perda de muitas delícias, visto que tais homens sonegam a si próprios o desfrute até mesmo de coisas inocentes e, o que é pior, vivem a se torturar e atormentar com as inquietações, temores e apreensões de que se ocupam".
Prometeu desafia os deuses e quer ultrapassá-los. Amarrado ao pilar da necessidade, ele encontra alívio no sono, mas segue aterrado por ansiedades e pensamentos céleres como a águia, que ferem e dilaceram o seu espírito desperto e fazem do seu corpo uma fonte de tormento. Epimeteu é o servo inconsequente dos impulsos e pulsões que o arrastam pela vida. Jovial, extrovertido e como que embriagado dos sonhos generosos e esperanças que alimenta, ele tropeça pela existência em meio a apuros e prazeres efêmeros.
Toda opção tem custos. O conflito entre Prometeu e Epimeteu é de todas as épocas e povoa cada peito humano. Estarei sozinho, contudo, em vislumbrar, na fábula dos dois irmãos mitológicos, a lenda de todo um povo que aspira aos poderes e confortos da racionalidade de Prometeu, mas se nega obstinadamente a abrir mão dos gozos e delícias da imprevidência de Epimeteu?



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