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Prometeu e Epimeteu nos Trópicos
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Todo ano o ciclo se repete.
Desabamentos, enchentes, incêndios, blecautes, desmoronamentos, erosão, queimadas,
epidemias, acidentes de toda
sorte -a enxurrada de calamidades que assola o verão
brasileiro tem a regularidade e
a fatalidade das estações do
clima. É como o surgimento de
goteiras nos prédios de Oscar
Niemeyer: a única dúvida é saber aonde exatamente elas
aparecerão. Desde que me dou
por gente é assim.
O que fazer? Cada um, é natural, faz sua parte. As oposições acusam, as autoridades se
explicam. Os que estão no poder prometem agir e os que o
pleiteiam juram que com eles
tudo será diferente. É da lógica
das calamidades que nos afligem que sempre haja um culpado que se possa incriminar e
odiar. As "contradições do capitalismo" caíram em desuso,
mas aí está uma nova safra de
bodes expiatórios -"globalização", "neoliberalismo", "elite covarde"- para não deixar
a peteca da indignação cair.
De minha parte, sigo a recomendação do poeta Drummond e me abstenho de "sofismar quem tem razão entre
sem-razões deste instante".
Não é de hoje nem de ontem
que uma alegre e trágica imprevidência parece haver se
constituído em verdadeiro modo de vida entre nós e duvido
que alguma categoria ideológica ou sociológica tenha o
dom de desvendar o segredo de
sua origem e perenidade na
convivência brasileira.
Mitologia por mitologia, a
fábula de Prometeu e Epimeteu me parece conter mais poesia e verdade sobre a nossa sina e condição do que a pororoca amazônica de incriminações oportunas e atribuições
cruzadas de culpa que desaguam diariamente no leito da
imprensa. É a ponta que me
cabe em nossa tragicomédia de
erros: um rodapé à margem da
fúria sagrada dos justiceiros.
As versões da fábula e os detalhes da narrativa variam de
autor para autor, mas o sentido geral da trama é comum.
Prometeu e Epimeteu são dois
irmãos semideuses, primos de
Zeus na linhagem dos titãs, a
quem as divindades do Olimpo
atribuíram a tarefa de criar a
humanidade a partir do barro.
A criatura altamente contraditória que resultou da encomenda reflete a grandeza e a
fraqueza peculiares de cada
um dos criadores.
Prometeu e Epimeteu representam pólos extremos e simétricos da relação entre o pensar e o agir. Os nomes falam
por si. Prometeu em grego significa "pré-pensador": ele é o
que pensa antes de agir. Epimeteu, por sua vez, é o
"pós-pensador": ele é o que age
antes de pensar. Enquanto um
calcula, delibera e busca prever e domar o futuro, o outro se
entrega ao impulso, desfruta e
busca tirar do momento tudo o
que ele pode oferecer de melhor.
A figura de Prometeu é heróica. Ao completar a tarefa da
criação, ele bandeia de time:
torna-se um campeão das causas humanas e se alia aos mortais na luta contra a opressão e
avareza dos deuses. (Não foi à
toa que Marx fez dele o grande
herói de sua tese de doutorado). O principal feito de Prometeu foi surrupiar o domínio
do fogo da guarda de Zeus. Armado de ousadia e astúcia, ele
colocou a luz do saber, o poder
da tecnologia e o segredo da
transmutação do instinto em
inteligência à disposição do
animal humano.
Zeus, é claro, não gostou da
insolência. Ordenou que se
moldasse a partir do barro
uma mulher esplêndida e irresistível -Pandora ("todos os
encantos")-, para que ela seduzisse Prometeu e oferecesse a
ele uma caixa nupcial contendo as mais valiosas prendas do
Olimpo. A armadilha-vingança de Zeus, porém, não acertou
o alvo. Prometeu, sagaz, fez
que não era com ele, e os charmes de Pandora acabaram cativando o coração de Epimeteu
que, sem dar ouvidos aos alertas do irmão, logo se apaixonou e casou com ela.
Foi por meio de Epimeteu,
portanto, que o castigo de Prometeu atingiu a humanidade.
Ele abre impetuoso a tampa da
caixa de Pandora e do presente
nupcial dos deuses escapa e se
espalha pelo mundo uma sucessão infindável de males e
infortúnios que passam a afligir os homens. Quando Epimeteu se dá conta do desastre e
consegue recolocar a tampa, é
tarde. Só a esperança restou no
fundo da caixa para consolar
os homens e amenizar suas penas.
Epimeteu penou, mas a pena
do herói-rebelde Prometeu não
ficou por menos. Ele foi acorrentado a um rochedo solitário
no Cáucaso e, por ordem de
Zeus, condenado por 30 mil
anos ao tormento de ter o fígado devorado por uma águia.
Terror perpétuo. A cada noite
o fígado de Prometeu se regenerava de modo a que a ave
pudesse novamente servir-se
dele no dia seguinte.
Essa, em essência, a fábula
dos dois irmãos mitológicos.
Permita-me agora, leitor, à
guisa de moral da história, reproduzir a magnífica interpretação do mito sugerida pelo filósofo renascentista Francis
Bacon.
"Os seguidores de Epimeteu",
observa Bacon, "são imprevidentes, pouco enxergam à
frente e preferem o que seja
aprazível no presente; daí que
vivam premidos por numerosos apertos e calamidades contra os quais pelejam de modo
quase contínuo; nos intervalos,
entretanto, eles saciam os seus
desejos e, por falta de um melhor conhecimento das coisas,
alimentam o seu espírito com
esperanças vãs e deleitam-se e
suavizam as misérias da vida
como em sonhos prazenteiros".
"Já os adeptos de Prometeu",
pondera o filósofo, "são homens prudentes e sóbrios que
miram o futuro e, cheios de
cautela, antecipam e previnem
muitas calamidades e infortúnios; ocorre, porém, que essa
índole alerta e previdente é
acompanhada da privação de
numerosos prazeres e da perda
de muitas delícias, visto que
tais homens sonegam a si próprios o desfrute até mesmo de
coisas inocentes e, o que é pior,
vivem a se torturar e atormentar com as inquietações, temores e apreensões de que se ocupam".
Prometeu desafia os deuses e
quer ultrapassá-los. Amarrado
ao pilar da necessidade, ele encontra alívio no sono, mas segue aterrado por ansiedades e
pensamentos céleres como a
águia, que ferem e dilaceram o
seu espírito desperto e fazem
do seu corpo uma fonte de tormento. Epimeteu é o servo inconsequente dos impulsos e
pulsões que o arrastam pela vida. Jovial, extrovertido e como
que embriagado dos sonhos generosos e esperanças que alimenta, ele tropeça pela existência em meio a apuros e prazeres efêmeros.
Toda opção tem custos. O
conflito entre Prometeu e Epimeteu é de todas as épocas e
povoa cada peito humano. Estarei sozinho, contudo, em vislumbrar, na fábula dos dois irmãos mitológicos, a lenda de
todo um povo que aspira aos
poderes e confortos da racionalidade de Prometeu, mas se
nega obstinadamente a abrir
mão dos gozos e delícias da
imprevidência de Epimeteu?
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