São Paulo, Sexta-feira, 05 de Março de 1999
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CINEMA/CRÍTICA - "ELIZABETH"
Longa transforma rainha em heroína moderna

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

No início, "Elizabeth" parece menos um drama histórico do que uma versão de "A Gata Borralheira" adaptada ao século 16, com Elizabeth 1ª no papel da própria e Maria Tudor no de madrasta.
Não que isso não tenha sua parte de verdade. Filha de Ana Bolena, a segunda mulher de Henrique 8º, Elizabeth era mesmo a bastarda da corte britânica. E sua predecessora, Maria Tudor, dita "a sanguinária", não passou para a história como uma senhora caridosa.
Mas a preocupação do filme em criar um claro contraste entre a rainha -madrasta má, além de soberana sem grandes dotes- e a então princesa Elizabeth -jovem até certo ponto ingênua e dedicada sobretudo às coisas do amor- é revelador do que teremos pela frente.
Embora os fatos centrais de sua época estejam todos no filme (os conflitos entre católicos e protestantes, a pindaíba em que encontrou o país, sua luta para se consolidar no trono, o conflito com Maria Stuart, rainha da Escócia), a preocupação central dos produtores foi mostrar as dificuldades de uma mulher no trabalho.
Nesse sentido, é inegável que se trata de um filme com preocupações bastante atuais. Tanto Elizabeth, como as Marias Tudor e Stuart foram rainhas em um mundo especificamente masculino.
Das três, é possível que Elizabeth seja a que melhor soube interpretar e dominar esse mundo (já que a desgraça de Maria Stuart começou com seus problemas matrimoniais). E um dos aspectos mais interessantes do filme consiste, justamente, em mostrar como a tomada do poder por Elizabeth 1ª" se dá pela superação das "deficiências" do feminino: delicadeza, bondade natural e romantismo (entre outras, ela soterrará as exigências do desejo e entrará para a história como "a rainha virgem").
Essa opção feminista coloca em surdina fatos mais que relevantes do reinado de Elizabeth, como a aniquilação dos católicos, suas disputas com espanhóis e franceses e a submissão da igreja ao Estado -particularidade britânica que, além do mais, torna muito especial o caráter das lutas religiosas na Inglaterra (Elizabeth as utiliza com maestria no sentido de construção do Estado nacional, ou, no caso, do Império).

Falsidades
Também se pode creditar ao caminho buscado pelos produtores certas falsidades difundidas pelo filme, como a morte de Maria Stuart. A menos que exista uma nova teoria a respeito, Maria Stuart foi executada a mando de Elizabeth, e não envenenada, como está sugerido na trama.
É lícito que filmes de ficção, ainda que biográficos, tomem certas liberdades em relação aos acontecimentos.
O problema, em "Elizabeth", é que eles tendem por vezes a ocultar a rainha em favor da Gata Borralheira, no primeiro momento, e em favor da mulher que percebe ser o domínio de si mesma o fator decisivo para superar seus problemas de formação e se impor num universo de homens.
E como o principal desafio colocado a Elizabeth para chegar a ser senhora de si mesma pelo roteiro é o de dominar a própria sexualidade, não é impossível ver no filme uma alusão à tragicomédia bem atual do presidente Clinton, tão bem-sucedido nas coisas do poder, mas que quase se estrepa por mera incapacidade de controlar seus impulsos. É uma leitura bem livre, é verdade, mas que não deixa de tocar num assunto importante desta virada de milênio.
Entramos no século 20 com Freud demonstrando que o homem não é centro de si mesmo e girando, assim, a chave de toda a liberação sexual que marcou nossa época.
Chegamos ao século 21 desacreditando do inconsciente e dando toda força a drogas que ressuscitam a idéia de um homem outra vez centro de si mesmo e do universo.
Vistas assim as coisas, a Elizabeth 1ª deste filme é também a rainha do "self control", que troca prazer por poder, impulso anárquico por dominação. Uma heroína bem atual, para uso de homens e mulheres.

Filme: Elizabeth
Produção: Inglaterra, 1998

Direção: Shekhar Kapur Com: Cate Blanchett, Joseph Fiennes, Geoffrey Rush, Richard Attenborough Quando: a partir de hoje nos cines Cinearte 1, Morumbi 6, Gazetinha e circuito



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