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CINEMA/CRÍTICA - "ELIZABETH"
Longa transforma rainha em heroína moderna
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
No início, "Elizabeth" parece
menos um drama histórico do que
uma versão de "A Gata Borralheira" adaptada ao século 16, com Elizabeth 1ª no papel da própria e Maria Tudor no de madrasta.
Não que isso não tenha sua parte
de verdade. Filha de Ana Bolena, a
segunda mulher de Henrique 8º,
Elizabeth era mesmo a bastarda da
corte britânica. E sua predecessora, Maria Tudor, dita "a sanguinária", não passou para a história como uma senhora caridosa.
Mas a preocupação do filme em
criar um claro contraste entre a
rainha -madrasta má, além de
soberana sem grandes dotes- e a
então princesa Elizabeth -jovem
até certo ponto ingênua e dedicada
sobretudo às coisas do amor- é
revelador do que teremos pela
frente.
Embora os fatos centrais de sua
época estejam todos no filme (os
conflitos entre católicos e protestantes, a pindaíba em que encontrou o país, sua luta para se consolidar no trono, o conflito com Maria Stuart, rainha da Escócia), a
preocupação central dos produtores foi mostrar as dificuldades de
uma mulher no trabalho.
Nesse sentido, é inegável que se
trata de um filme com preocupações bastante atuais. Tanto Elizabeth, como as Marias Tudor e
Stuart foram rainhas em um mundo especificamente masculino.
Das três, é possível que Elizabeth
seja a que melhor soube interpretar e dominar esse mundo (já que a
desgraça de Maria Stuart começou
com seus problemas matrimoniais). E um dos aspectos mais interessantes do filme consiste, justamente, em mostrar como a tomada do poder por Elizabeth 1ª" se
dá pela superação das "deficiências" do feminino: delicadeza,
bondade natural e romantismo
(entre outras, ela soterrará as exigências do desejo e entrará para a
história como "a rainha virgem").
Essa opção feminista coloca em
surdina fatos mais que relevantes
do reinado de Elizabeth, como a
aniquilação dos católicos, suas disputas com espanhóis e franceses e
a submissão da igreja ao Estado
-particularidade britânica que,
além do mais, torna muito especial
o caráter das lutas religiosas na Inglaterra (Elizabeth as utiliza com
maestria no sentido de construção
do Estado nacional, ou, no caso, do
Império).
Falsidades
Também se pode creditar ao caminho buscado pelos produtores
certas falsidades difundidas pelo
filme, como a morte de Maria
Stuart. A menos que exista uma
nova teoria a respeito, Maria
Stuart foi executada a mando de
Elizabeth, e não envenenada, como está sugerido na trama.
É lícito que filmes de ficção, ainda que biográficos, tomem certas
liberdades em relação aos acontecimentos.
O problema, em "Elizabeth", é
que eles tendem por vezes a ocultar
a rainha em favor da Gata Borralheira, no primeiro momento, e em
favor da mulher que percebe ser o
domínio de si mesma o fator decisivo para superar seus problemas
de formação e se impor num universo de homens.
E como o principal desafio colocado a Elizabeth para chegar a ser
senhora de si mesma pelo roteiro é
o de dominar a própria sexualidade, não é impossível ver no filme
uma alusão à tragicomédia bem
atual do presidente Clinton, tão
bem-sucedido nas coisas do poder,
mas que quase se estrepa por mera
incapacidade de controlar seus impulsos. É uma leitura bem livre, é
verdade, mas que não deixa de tocar num assunto importante desta
virada de milênio.
Entramos no século 20 com
Freud demonstrando que o homem não é centro de si mesmo e
girando, assim, a chave de toda a liberação sexual que marcou nossa
época.
Chegamos ao século 21 desacreditando do inconsciente e dando
toda força a drogas que ressuscitam a idéia de um homem outra
vez centro de si mesmo e do universo.
Vistas assim as coisas, a Elizabeth 1ª deste filme é também a rainha do "self control", que troca
prazer por poder, impulso anárquico por dominação. Uma heroína bem atual, para uso de homens
e mulheres.
Filme: Elizabeth
Produção: Inglaterra, 1998
Direção: Shekhar Kapur
Com: Cate Blanchett, Joseph Fiennes,
Geoffrey Rush, Richard Attenborough
Quando: a partir de hoje nos cines Cinearte
1, Morumbi 6, Gazetinha e circuito
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