São Paulo, Sexta-feira, 05 de Março de 1999
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Roteiro de crise para qualquer tempo


CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Qualquer brasileiro médio, maior de 5 meses de idade e menor de 500 anos, pode dizer que nasceu, viveu, morreu ou morrerá em crise. Umas pelas outras, são todas mais ou menos iguais, com um grupo se safando e outro se trumbicando.
Não farei uma pesquisa de nossas crises desde Cabral, mesmo porque tenho poucas informações a respeito. Em criança, vi meu pai viver crises estranhas, numa delas, ele teve de levar uma velha pistola que nunca dera um tiro e nem tinha munição. Mas todos os adultos andaram armados naqueles dias -nem lembro mais a troco de quê.
Já houve crise por causa da vacina obrigatória. Houve outra que nem sei por que foi chamada de crise dos alfaiates. Por aí se vê que nossa tradição é respeitável nesse departamento. De minha fase adulta e profissional, peguei a crise que levou Vargas ao suicídio -esta sim foi uma senhora crise. A partir daí, e com o pequeno intervalo do governo JK, havia crise todos os meses e por todos os motivos.
No início dos anos 60, tivemos uma sucessão de momentos críticos. Os jornais estampavam tremendos editoriais na primeira página, alertando para o abismo que nos devoraria se fulano fizesse ou não fizesse determinada coisa.
Nessa época, eu era editor de um jornal no Rio e muito me divertia com as vigílias cívicas que éramos obrigados a fazer, pelo menos duas vezes por semana, geralmente às terças e sextas-feiras -também não sei por quê. A renúncia de Jânio, a cadeia da legalidade com o Rio Grande do Sul virando a mesa, a solução parlamentarista, o plebiscito, os dias complicados de Jango e finalmente o movimento militar de 64 obrigavam as redações a funcionarem em regime de calamidade nacional.
Mexendo em papéis antigos, dei com uma pasta em que guardara algumas pautas de reportagem daqueles dias. Como editor, recebia de hora em hora o relatório do pessoal que fuçava os rádios, espionava os outros jornais, além da turma que estava espalhada pelos ministérios, pelos principais quartéis da cidade, pelas residências das principais autoridades do país.
Juntando as informações recebidas, fiz o seguinte levantamento que não me lembro se chegou a ser publicado. Em linhas gerais, esta sinopse serve para crises passadas, presentes e futuras. Mudavam alguns nomes, alguns cargos, mas a espinha dorsal era sempre a mesma. Vejamos:
15h - O ministro da Guerra manda prender o general Pery Bevilacqua; o general Pery manda prender o general Kruel. Os líderes sindicais hipotecam solidariedade a ambos e o presidente da República nega que esteja disposto a renunciar. A Marinha entra em prontidão e o governador da Guanabara diz que está pronto para resistir.
15h15 - A Vila Militar diz que vai para a rua e o presidente da República demite o general Kruel, o qual demite o general Pery, e o general Pery manda demitir o general Kruel e o presidente da República. O cardeal lança manifesto pedindo cordura e o governador da Guanabara ameaça ir para a TV fazer graves denúncias. Os líderes sindicais estão solidários.
15h30 - Preso por 20 dias o ministro da Guerra. O chefe da Casa Civil desmente todos os boatos e diz que o presidente está despachando normalmente. O general Jair Dantas renuncia ao ministério e o deputado José Gomes Talarico assume o comando de um piquete que vai paralisar a Leopoldina.
17h - O presidente da República pede confiança nos altos destinos do país. O ministro da Guerra diz que o Exército está coeso e o general Osvino diz que a bandeira nacional não será conspurcada. Os líderes sindicais preparam uma mensagem de solidariedade a Fidel Castro, que entra na crise sem mais nem menos. Na UNE, o sr. Brizola diz que a culpa é do capital alienígena. O ex-deputado José Aparecido é visto entrando na casa de um cunhado do general Lott.
18h - San Thiago Dantas anuncia uma fórmula salvadora e o governador da Guanabara garante que o Banco do Brasil foi assaltado pelos lacaios de Moscou. O general Osvino manda prender novamente todo mundo e o ministro da Guerra manda prender o general Osvino. Há um boato: o sr. Arraes teve um infarto.
19h - O cardeal ora pela paz da família brasileira e o almirante Aragão sai de metralhadora à rua para defender a lei. O líder Amaral Neto culpa o sr. Brizola e o sr. Brizola ameaça invadir o Uruguai. O general Osvino assume o Ministério da Guerra, o ministro da Guerra dá um golpe e derruba o regime e o ministro da Justiça prepara um desmentido. Os líderes sindicais continuam solidários.
23h - Presidente da República, ministro da Guerra e general Pery assinam nota conjunta dizendo que estão unidos pelo aprimoramento das instituições. O PSD se reúne para salvaguardar o regime. Os líderes sindicais, sem mais ninguém para prestar solidariedade, solidarizam-se consigo mesmos. Na calada da noite, o ex-deputado José Aparecido é visto saindo da casa do humorista Ziraldo.
24h - Manchete do jornal no dia seguinte: "Casal de amantes esfaqueado na Central do Brasil".


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