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Roteiro de crise para qualquer tempo
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Qualquer brasileiro médio,
maior de 5 meses de idade e
menor de 500 anos, pode dizer
que nasceu, viveu, morreu ou
morrerá em crise. Umas pelas
outras, são todas mais ou menos iguais, com um grupo se safando e outro se trumbicando.
Não farei uma pesquisa de
nossas crises desde Cabral,
mesmo porque tenho poucas
informações a respeito. Em
criança, vi meu pai viver crises
estranhas, numa delas, ele teve
de levar uma velha pistola que
nunca dera um tiro e nem tinha munição. Mas todos os
adultos andaram armados naqueles dias -nem lembro mais
a troco de quê.
Já houve crise por causa da
vacina obrigatória. Houve outra que nem sei por que foi chamada de crise dos alfaiates. Por
aí se vê que nossa tradição é
respeitável nesse departamento. De minha fase adulta e profissional, peguei a crise que levou Vargas ao suicídio -esta
sim foi uma senhora crise. A
partir daí, e com o pequeno intervalo do governo JK, havia
crise todos os meses e por todos
os motivos.
No início dos anos 60, tivemos
uma sucessão de momentos
críticos. Os jornais estampavam tremendos editoriais na
primeira página, alertando para o abismo que nos devoraria
se fulano fizesse ou não fizesse
determinada coisa.
Nessa época, eu era editor de
um jornal no Rio e muito me
divertia com as vigílias cívicas
que éramos obrigados a fazer,
pelo menos duas vezes por semana, geralmente às terças e
sextas-feiras -também não sei
por quê. A renúncia de Jânio, a
cadeia da legalidade com o Rio
Grande do Sul virando a mesa,
a solução parlamentarista, o
plebiscito, os dias complicados
de Jango e finalmente o movimento militar de 64 obrigavam
as redações a funcionarem em
regime de calamidade nacional.
Mexendo em papéis antigos,
dei com uma pasta em que
guardara algumas pautas de
reportagem daqueles dias. Como editor, recebia de hora em
hora o relatório do pessoal que
fuçava os rádios, espionava os
outros jornais, além da turma
que estava espalhada pelos ministérios, pelos principais
quartéis da cidade, pelas residências das principais autoridades do país.
Juntando as informações recebidas, fiz o seguinte levantamento que não me lembro se
chegou a ser publicado. Em linhas gerais, esta sinopse serve
para crises passadas, presentes
e futuras. Mudavam alguns
nomes, alguns cargos, mas a espinha dorsal era sempre a mesma. Vejamos:
15h - O ministro da Guerra
manda prender o general Pery
Bevilacqua; o general Pery
manda prender o general
Kruel. Os líderes sindicais hipotecam solidariedade a ambos e o presidente da República
nega que esteja disposto a renunciar. A Marinha entra em
prontidão e o governador da
Guanabara diz que está pronto
para resistir.
15h15 - A Vila Militar diz que
vai para a rua e o presidente da
República demite o general
Kruel, o qual demite o general
Pery, e o general Pery manda
demitir o general Kruel e o presidente da República. O cardeal lança manifesto pedindo
cordura e o governador da
Guanabara ameaça ir para a
TV fazer graves denúncias. Os
líderes sindicais estão solidários.
15h30 - Preso por 20 dias o
ministro da Guerra. O chefe da
Casa Civil desmente todos os
boatos e diz que o presidente
está despachando normalmente. O general Jair Dantas renuncia ao ministério e o deputado José Gomes Talarico assume o comando de um piquete
que vai paralisar a Leopoldina.
17h - O presidente da República pede confiança nos altos
destinos do país. O ministro da
Guerra diz que o Exército está
coeso e o general Osvino diz
que a bandeira nacional não
será conspurcada. Os líderes
sindicais preparam uma mensagem de solidariedade a Fidel
Castro, que entra na crise sem
mais nem menos. Na UNE, o sr.
Brizola diz que a culpa é do capital alienígena. O ex-deputado José Aparecido é visto entrando na casa de um cunhado
do general Lott.
18h - San Thiago Dantas
anuncia uma fórmula salvadora e o governador da Guanabara garante que o Banco do Brasil foi assaltado pelos lacaios de
Moscou. O general Osvino
manda prender novamente todo mundo e o ministro da
Guerra manda prender o general Osvino. Há um boato: o sr.
Arraes teve um infarto.
19h - O cardeal ora pela paz
da família brasileira e o almirante Aragão sai de metralhadora à rua para defender a lei.
O líder Amaral Neto culpa o sr.
Brizola e o sr. Brizola ameaça
invadir o Uruguai. O general
Osvino assume o Ministério da
Guerra, o ministro da Guerra
dá um golpe e derruba o regime
e o ministro da Justiça prepara
um desmentido. Os líderes sindicais continuam solidários.
23h - Presidente da República, ministro da Guerra e general Pery assinam nota conjunta
dizendo que estão unidos pelo
aprimoramento das instituições. O PSD se reúne para salvaguardar o regime. Os líderes
sindicais, sem mais ninguém
para prestar solidariedade, solidarizam-se consigo mesmos.
Na calada da noite, o ex-deputado José Aparecido é visto
saindo da casa do humorista
Ziraldo.
24h - Manchete do jornal no
dia seguinte: "Casal de amantes esfaqueado na Central do
Brasil".
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