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"Ensaio Geral" auxilia compreensão histórica do Brasil dos 60 e 70
do enviado ao Rio
O Brasil amanhecerá diferente na
segunda-feira, quando as caixas
"Ensaio Geral" estiverem chegando às lojas de discos. Pois nunca na
história da MPB se viu um projeto
discográfico de recuperação de
memória com tal envergadura.
O evento, claro, reside no material raro e inédito. Com ele se descortina no país a cultura de "bonus
track", de arqueologia, até hoje
próxima do ínfimo nas grandes
gravadoras (a EMI havia se lançado nela há pouco, com projetos dedicados a Paulinho da Viola e Clara
Nunes, mas retrocedeu).
"Ensaio Geral" é mais importante que a mera reposição de elos
perdidos da trajetória de Gilberto
Gil. Pelo encontro com o que ele
fez e não lançou, pode-se chegar
não só a um Gil que poderia ter sido e não foi, mas também à compreensão de todo um período histórico brasileiro, de 1966 a 1977
-portanto, é inacreditável que a
Universal se recuse a lançar cada
título da caixa avulso, de modo a
atenuar o teor elitista do projeto.
Unido ao material já conhecido
-faltam os projetos coletivos, de
"Tropicália" (68) a "Doces Bárbaros" (76), indispensáveis à compreensão global do caso-, o que
há de novo não muda o perfil de
Gil, mas o acentua.
Por "Ensaio Geral" se deslinda
uma trajetória clara da política rumo ao cosmo, da cultura rumo à
natureza. Em meio a ela, houve um
AI-5 e, para o artista, um exílio.
O primeiro Gil, de "Louvação"
(67), era político, militante, ortodoxo -a ponto de compor "Rancho da Rosa Encarnada" em parceria com Geraldo Vandré.
O tropicalismo já se insinuava, e
o bônus "A Moreninha", de Tom
Zé, é primeira surpresa, quase um
rito de iniciação do movimento, só
à espera da chegada de um maestro
como Rogério Duprat. "A Coisa
Mais Linda Que Existe", retirada
do disco-manifesto para a entrada
de "Lindonéia", demarca a importância de Duprat no processo.
Dessa transição surgem "Questão de Ordem" (com os argentinos
Beat Boys), "A Luta contra a Lata
ou A Falência do Café" (com os
Mutantes) e "Queremos Guerra"
(de Jorge Ben), canções geniais e
ferozes capazes hoje de ajudar a esclarecer as razões do exílio.
Se o tropicalismo era projeto embaralhador de todos os conceitos
políticos, seu desmoronamento
acompanhou o desmoronamento
político brasileiro em si.
Em Gil, tal se reflete, a partir das
masturbatórias canções de exílio,
em trajeto de fuga, do protesto político às viagens alucinógenas, à
desaceleração do raciocínio. É o
que aparece com toda intensidade
no material inédito -Gil entregue
às experimentações anticomerciais, ao amor pelas culturas orientais, à macrobiótica, às drogas.
Era uma viagem, mas era também uma renúncia. O artista flutuava ao sabor do vento, a barra
pesada pressionando por todos os
lados. Essa é a história não de Gil,
mas de toda uma geração.
A perplexidade que exala das
canções malditas pescadas de Jorge Mautner e Jards Macalé ("Baby
Hippie", "Planeta dos Macacos")
ou das loucuras com João Donato
("A Bruxa de Mentira") é a mesma
do "grande desbunde" -ou melhor, do "grande escape"- em que
o Brasil setentista mergulhou.
Acontece que Gil, desde sempre
um obstinado pelo estrelato, mesmo desbundado nunca perdeu o
tino de adesão aos tempos.
A caixa ainda flagra a aurora do
novo pouso, no clique de Gil se associar aos movimentos black que
se conformavam no Rio na segunda metade dos 70. Duas faixas com
Chico Batera e duas com a Brazil
Very Happy Band dão dimensão
do espanto: Gil entendia que o pop
no momento estava no submundo
do funk e, ainda uma vez, amalgamava underground e mainstream.
Daí em diante seria o pop puro,
comercial, diluído, tanto quanto a
chegada ao chão de centro -que
se consumaria em Gil fazendo suporte, com Caetano, ao Brasil neoliberal de FHC.
A política, portanto, continuou a
perfurar sua obra. Mas, em seu caso específico, um dado seria maior
que qualquer outro -e a caixa demonstra isso brilhantemente-
para suavizar qualquer mácula extra-artística: "música" poderia ser
o apelido de Gilberto Gil, um artista brasileiro em que a natureza
sempre falou mais alto.
(PAS)
Caixa: Ensaio Geral (dez CDs mais CD bônus)
Artista: Gilberto Gil
Lançamento: PolyGram/Universal
Quanto: entre R$ 250 e R$ 290
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