São Paulo, Sexta-feira, 05 de Março de 1999
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"Ensaio Geral" auxilia compreensão histórica do Brasil dos 60 e 70

do enviado ao Rio

O Brasil amanhecerá diferente na segunda-feira, quando as caixas "Ensaio Geral" estiverem chegando às lojas de discos. Pois nunca na história da MPB se viu um projeto discográfico de recuperação de memória com tal envergadura.
O evento, claro, reside no material raro e inédito. Com ele se descortina no país a cultura de "bonus track", de arqueologia, até hoje próxima do ínfimo nas grandes gravadoras (a EMI havia se lançado nela há pouco, com projetos dedicados a Paulinho da Viola e Clara Nunes, mas retrocedeu).
"Ensaio Geral" é mais importante que a mera reposição de elos perdidos da trajetória de Gilberto Gil. Pelo encontro com o que ele fez e não lançou, pode-se chegar não só a um Gil que poderia ter sido e não foi, mas também à compreensão de todo um período histórico brasileiro, de 1966 a 1977 -portanto, é inacreditável que a Universal se recuse a lançar cada título da caixa avulso, de modo a atenuar o teor elitista do projeto.
Unido ao material já conhecido -faltam os projetos coletivos, de "Tropicália" (68) a "Doces Bárbaros" (76), indispensáveis à compreensão global do caso-, o que há de novo não muda o perfil de Gil, mas o acentua.
Por "Ensaio Geral" se deslinda uma trajetória clara da política rumo ao cosmo, da cultura rumo à natureza. Em meio a ela, houve um AI-5 e, para o artista, um exílio.
O primeiro Gil, de "Louvação" (67), era político, militante, ortodoxo -a ponto de compor "Rancho da Rosa Encarnada" em parceria com Geraldo Vandré.
O tropicalismo já se insinuava, e o bônus "A Moreninha", de Tom Zé, é primeira surpresa, quase um rito de iniciação do movimento, só à espera da chegada de um maestro como Rogério Duprat. "A Coisa Mais Linda Que Existe", retirada do disco-manifesto para a entrada de "Lindonéia", demarca a importância de Duprat no processo.
Dessa transição surgem "Questão de Ordem" (com os argentinos Beat Boys), "A Luta contra a Lata ou A Falência do Café" (com os Mutantes) e "Queremos Guerra" (de Jorge Ben), canções geniais e ferozes capazes hoje de ajudar a esclarecer as razões do exílio.
Se o tropicalismo era projeto embaralhador de todos os conceitos políticos, seu desmoronamento acompanhou o desmoronamento político brasileiro em si.
Em Gil, tal se reflete, a partir das masturbatórias canções de exílio, em trajeto de fuga, do protesto político às viagens alucinógenas, à desaceleração do raciocínio. É o que aparece com toda intensidade no material inédito -Gil entregue às experimentações anticomerciais, ao amor pelas culturas orientais, à macrobiótica, às drogas.
Era uma viagem, mas era também uma renúncia. O artista flutuava ao sabor do vento, a barra pesada pressionando por todos os lados. Essa é a história não de Gil, mas de toda uma geração.
A perplexidade que exala das canções malditas pescadas de Jorge Mautner e Jards Macalé ("Baby Hippie", "Planeta dos Macacos") ou das loucuras com João Donato ("A Bruxa de Mentira") é a mesma do "grande desbunde" -ou melhor, do "grande escape"- em que o Brasil setentista mergulhou.
Acontece que Gil, desde sempre um obstinado pelo estrelato, mesmo desbundado nunca perdeu o tino de adesão aos tempos.
A caixa ainda flagra a aurora do novo pouso, no clique de Gil se associar aos movimentos black que se conformavam no Rio na segunda metade dos 70. Duas faixas com Chico Batera e duas com a Brazil Very Happy Band dão dimensão do espanto: Gil entendia que o pop no momento estava no submundo do funk e, ainda uma vez, amalgamava underground e mainstream.
Daí em diante seria o pop puro, comercial, diluído, tanto quanto a chegada ao chão de centro -que se consumaria em Gil fazendo suporte, com Caetano, ao Brasil neoliberal de FHC.
A política, portanto, continuou a perfurar sua obra. Mas, em seu caso específico, um dado seria maior que qualquer outro -e a caixa demonstra isso brilhantemente- para suavizar qualquer mácula extra-artística: "música" poderia ser o apelido de Gilberto Gil, um artista brasileiro em que a natureza sempre falou mais alto. (PAS)

Caixa: Ensaio Geral (dez CDs mais CD bônus) Artista: Gilberto Gil Lançamento: PolyGram/Universal Quanto: entre R$ 250 e R$ 290

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