São Paulo, Sexta-feira, 05 de Março de 1999
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DISCO - LANÇAMENTOS
Baú de Gil liberta 88 raras e/ou inéditas

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio

Nunca houve isso na MPB. A caixa de luxo "Ensaio Geral", com 11 CDs de Gilberto Gil, 56, promove o mais extenso projeto de revisão da carreira de um compositor que o Brasil já presenciou.
A caixa -acompanhada de livro ilustrado, de capa dura, bilíngue- tem tiragem inicial de 10 mil cópias. Em princípio, a gravadora diz que não lançará os CDs avulsos. O preço pode chegar a R$ 300.
O inventário abrange o período que Gil passou na PolyGram -hoje Universal-, com faixas gravadas entre 1966 e 1977. São reeditados seis álbuns solo do período -"Refazenda" (75) e "Refavela" (77) não entram, pois pertencem agora à gravadora WEA-, com um total de 22 faixas-bônus.
Os outros cinco CDs são compostos de material raro ou inédito. Aqui se inclui "Cidade do Salvador", CD duplo com 22 faixas que comporiam um LP nunca lançado.
"Foi uma surpresa descobrir que entre "Expresso 2222" (72) e "Refazenda" ele gravou um disco inteiro. Os arquivos não falam desse disco. O tempo foi passando e ele não lançou, não sei por quê", diz o pesquisador Marcelo Fróes, 32, que coordena há quatro anos o projeto.
"Naquela época ficou incompleto. Não teve título, nem ordem de faixas. Gostaria que tivesse saído, embora eu mesmo tenha decidido não lançar. Não lembro bem por quê, talvez tenha percebido que seria um disco muito solto, desamarrado das exigências do mercado", tenta lembrar Gilberto Gil.
Um outro álbum, que teria sido iniciado por Gil em Londres, em 71, e seria seu segundo LP de exílio, não foi encontrado. Na busca, entretanto, Fróes descobriu, em Londres, seis gravações esquecidas sob a etiqueta "brazilian film music", sem qualquer referência a Gil.
Foram compostas por encomenda do cineasta Rogério Sganzerla, para seu filme "Copacabana Mon Amour" (70). "São gravações absolutamente livres. Aquilo não é quase nada", define-as o artista.
Outros blocos de faixas pouco conhecidas se encontram nos CDs "O Viramundo", de gravações ao vivo feitas entre 72 e 75, e "Satisfação - Raras & Inéditas", do período 74-77, que inclui parcerias com João Donato, Chico Batera, Nara Leão e a Brazil Very Happy Band, grupo de black music que Gil constituiu antes de iniciar "Refavela".
"Essa caixa tem valor político enorme. Todos os artistas da MPB têm farto material inédito, e a caixa de Gil pode abrir a cabeça das gravadoras", diz Fróes, que afirma já estar trabalhando com material inédito de Caetano Veloso.
"É um panorama amplo de uma época", define Gil. "Dá idéia de um artista em formação, em sua volúpia, em sua impetuosidade, em seu frescor. Ao mesmo tempo, me dá resignação em relação a coisas que nunca vou poder aperfeiçoar."
Ele reflete sobre o material inédito: "São objetos que foram refugados, por já naquele instante não possuírem um padrão mínimo. Os "failures" (fracassos) ensinam muito sobre uma época. Essa "marginália" toda diz sobre a história, por onde caminhei, o que rejeitei".
Uma das características que se evidenciam no material inédito é o pendor de Gil ao experimentalismo, em parte regado por experiências com drogas. "Eu ficava ali entre muitos ácidos, era maconheiro -e fazia macrobiótica. A droga era um ingrediente entre tantos outros, um fetiche dessa época."
Ele continua: "Falavam muito do barato, mas o que era o barato? Você tinha que viver. Vejo pelas fotos na caixa, os olhos sempre pipocados, algo brilhando no interior".
Daí ao experimentalismo: "Era uma época de desconstrução de todo um conjunto de objetos culturais já estabelecidos. Era o ideário de quebrar, de romper, de descomprometer. A juventude historicamente é assim. Hoje há o rap".
Marcelo Fróes estendeu sua pesquisa à WEA, gravadora em que Gil está desde 78, embora sem projeto concreto. Segundo ele, também aí há discos inéditos.
"Mas já é outra fase, não há mais os takes alternativos, com banda tocando ao vivo no estúdio. Nessa fase, já virou fábrica de automóvel, em que se faz um chassi e se vão colocando as peças", diz.
Gil parece concordar: "Hoje, os estúdios terceirizaram tarefas, chega-se neles com as obras já decupadas, dissecadas. Com isso, a arte ganhou precisão, mas perdeu a espontaneidade do desconstruído. Toda solução é um novo problema".
"Ensaio Geral", aberto ao Gil mais experimental, é hora de voltar àquela pré-história da indústria nacional de sucessos.


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora PolyGram/Universal


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