São Paulo, sexta-feira, 05 de abril de 2002

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"PI"

Aronofsky não reduz os mistérios da vida a fórmula nenhuma

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Espécie de Raskólnikov das matemáticas, o protagonista de "Pi", um misantropo epilético-delirante de linhagem dostoievskiana, leva até o fim os seus preceitos: 1) A matemática é a língua da natureza; 2) Tudo ao nosso redor pode ser representado e compreendido através dos números; 3) Há, portanto, um padrão para tudo (até para a Bolsa de Valores).
Trancado a sete chaves em seu apartamento barato, às voltas com Euclides, seu computador, nosso Raskólnikov, um judeu nova-iorquino chamado Max Cohen (Sean Gullette), embrenha-se em sua teoria numérica tal como o personagem dostoievskiano em sua teoria ética, só perdendo um pouco do frescor de suas neuroses ao perambular pelas ruas, no contato com os homens.
O autor Darren Aronofsky ("Réquiem para um Sonho"), em seu filme de estréia, cita mestres gregos e renascentistas para legitimar seu personagem, mas se esquece de Blaise Pascal, o gênio precoce da matemática, que, vítima de alucinações, tal como Cohen, tornou-se um místico, renunciando ao convívio humano.
Seguindo um périplo semelhante, do cientificismo ao misticismo, em sua jornada espiritual, Cohen acaba, como Pascal em suas alucinações, diante de um abismo.
O próximo passo é a loucura ou a morte, avisa-lhe Sol (Mark Margolis), o mestre que o precedia até ser vítima de um derrame. Para o discípulo, que pretende descobrir o segredo do universo em um número, Sol empresta "Hamlet", talvez na esperança de que Cohen aprenda com Shakespeare que, entre o céu e a terra, há muito mais mistérios do que sonha a nossa vã matemática.
Lançado tardiamente no Brasil na esteira do sucesso de "Uma Mente Brilhante", filme mainstream que recicla tema semelhante em escala industrial, "Pi" é uma autoconsciente "estréia de impacto" de Aronofsky. Cercando-se de referências e encontrando, no holismo de seu argumento, espaço para forjar o que se poderia classificar de um "thriller cerebral e excêntrico", capaz de reunir poderosos acionistas da bolsa e judeus cabalistas em torno do protagonista, Aronofsky lança, pragmático, o seu nome no mercado.
Mas, se "Pi" (uma produção independente, filmada em 16 mm preto-e-branco) transcende as categorias do gênero, é porque o cineasta não pretende reduzir os mistérios da vida a fórmula nenhuma. Apesar da suspeita insistência com que repete os preceitos que sustentam o seu personagem, ele não faz destes um "MacGuffin" (o termo usado por Hitchcock para designar os pretextos temáticos vazios de alguns de seus thrillers).
O cineasta não é indiferente à obsessão de seu personagem, e esta não serve de mero pretexto para o desenrolar da ação.
A prova está na incapacidade que Aronofsky demonstra em adequar a sua investigação temática ao esquema do thriller. O que os críticos americanos tenderiam a ver como defeito seria preciso ver como uma virtude. Virtude que, no caso da indústria americana, cujo procedimento agora é cooptar e adestrar os talentos emergentes do cinema independente, é, infelizmente, uma qualidade de iniciante.


Pi
Pi    
Direção: Darren Aronofsky
Produção: EUA, 1998
Com: Sean Gullette, Mark Margolis, Ben Shenkman
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco


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