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CINEMA/ESTRÉIAS
"CINE MAJESTIC"
Filme indaga a identidade nacional
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Numa das cenas de "Cine
Majestic", Jim Carrey afronta a Comissão de Atividades Anti-Americanas do Senado em plena
caça às bruxas, mas sai do recinto
ileso e aplaudido. Uma tal cena é
quase tão inverossímil quanto um
sujeito sair carregado em triunfo
dos tribunais stalinistas dos anos
30, ou um judeu deixar um campo de concentração nazista pela
porta da frente e em trajes civis.
No entanto, Frank Darabont, o
diretor deste filme, não é um tolo.
Longe disso. Não é absurdo pensar que ele não estava concebendo
uma cena "realista" (à maneira do
atual realismo americano, em que
cenas de heroísmo verbal são seguidas de aplausos da platéia).
Darabont estava, sim, fazendo um
comentário a essa maneira pouco
sutil de comover o público.
Isto é, ou se entende "Cine Majestic" dentro da mais interessante tradição do cinema americano,
a dos contrabandistas, ou não se
entende de forma nenhuma.
O que são os contrabandistas?
São diretores que, devendo se
submeter aos desígnios dos estúdios, no tempo em que os diretores não apitavam nada em Hollywood, conseguiam inserir suas
idéias nos filmes que faziam.
Outras cenas levam a pensar
nessa hipótese. Primeiro, "Cine
Majestic" é uma variante da história de "O Retorno de Martin
Guerre". No caso, Carrey é Peter
Appleton, roteirista de cinema
acusado, em 1951, de envolvimento com o Partido Comunista.
Como nada tinha a ver com isso, o perturbado Appleton envolve-se num acidente e quase morre
afogado. Reaparece numa pequena cidade, onde é tomado por Luke Trimble -herói de guerra desaparecido, filho do dono do cinema local (fechado), o Majestic.
Como perdeu a memória, Appleton acredita no que dizem e se
comporta como o herói. Ama seu
pai e sua garota como filho e namorado. Mas não é Luke Trimble.
A questão da identidade, que o
filme transfere para a cidadezinha, não deixa de ser ambígua.
Entre o roteirista e o herói de
guerra, existe uma distância a
considerar. Em questão, não está
apenas a distância entre ficção e
realidade, mas outra: a que separa
a Segunda Guerra da Guerra Fria,
os ideais puros das impurezas da
política, um mundo de certezas e
sonhos de um de incerteza e melancolia.
Ao ambientar o filme nessa cidade cheia de mártires, Darabont
introduz a dor, a perda, a morte.
Todavia algo de saudável há no
pequeno cemitério local, ou no
rapaz que, tendo sobrevivido, ostenta um gancho no lugar da mão.
Mesmo que sob a terra, todos ali
têm lugar, medalha e glória; todos
contribuíram para a vitória "do
bem" na Segunda Guerra. A dor
convive com a certeza.
O outro lado da história, o do
pós-guerra, pode não ter mortes.
Mas as perdas são mais graves:
quem é o governo, quem é o Senado, quem são os comunistas? Não
é apenas o roteirista que perdeu a
identidade. É a nação inteira.
Saltando no tempo, aos EUA de
hoje (já que o filme é feito hoje,
para o público atual), pode-se indagar se tal identidade foi reencontrada. Há no mínimo razoável
dúvida. "Cine Majestic" não trata
disso, aparentemente. Entre suas
muitas digressões, há lugar até para a nostalgia dos tempos de glória do cinema. Mas ela está lá,
muito clara. E de contrabando.
Cine Majestic
The Majestic
Direção: Frank Darabont
Produção: EUA, 2001
Com: Jim Carrey, Martin Landau
Quando: a partir de hoje nos cines
Cinearte, Interlagos e circuito
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