São Paulo, sexta-feira, 05 de abril de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"CINE MAJESTIC"

Filme indaga a identidade nacional

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Numa das cenas de "Cine Majestic", Jim Carrey afronta a Comissão de Atividades Anti-Americanas do Senado em plena caça às bruxas, mas sai do recinto ileso e aplaudido. Uma tal cena é quase tão inverossímil quanto um sujeito sair carregado em triunfo dos tribunais stalinistas dos anos 30, ou um judeu deixar um campo de concentração nazista pela porta da frente e em trajes civis.
No entanto, Frank Darabont, o diretor deste filme, não é um tolo. Longe disso. Não é absurdo pensar que ele não estava concebendo uma cena "realista" (à maneira do atual realismo americano, em que cenas de heroísmo verbal são seguidas de aplausos da platéia). Darabont estava, sim, fazendo um comentário a essa maneira pouco sutil de comover o público.
Isto é, ou se entende "Cine Majestic" dentro da mais interessante tradição do cinema americano, a dos contrabandistas, ou não se entende de forma nenhuma.
O que são os contrabandistas? São diretores que, devendo se submeter aos desígnios dos estúdios, no tempo em que os diretores não apitavam nada em Hollywood, conseguiam inserir suas idéias nos filmes que faziam.
Outras cenas levam a pensar nessa hipótese. Primeiro, "Cine Majestic" é uma variante da história de "O Retorno de Martin Guerre". No caso, Carrey é Peter Appleton, roteirista de cinema acusado, em 1951, de envolvimento com o Partido Comunista.
Como nada tinha a ver com isso, o perturbado Appleton envolve-se num acidente e quase morre afogado. Reaparece numa pequena cidade, onde é tomado por Luke Trimble -herói de guerra desaparecido, filho do dono do cinema local (fechado), o Majestic.
Como perdeu a memória, Appleton acredita no que dizem e se comporta como o herói. Ama seu pai e sua garota como filho e namorado. Mas não é Luke Trimble.
A questão da identidade, que o filme transfere para a cidadezinha, não deixa de ser ambígua. Entre o roteirista e o herói de guerra, existe uma distância a considerar. Em questão, não está apenas a distância entre ficção e realidade, mas outra: a que separa a Segunda Guerra da Guerra Fria, os ideais puros das impurezas da política, um mundo de certezas e sonhos de um de incerteza e melancolia.
Ao ambientar o filme nessa cidade cheia de mártires, Darabont introduz a dor, a perda, a morte. Todavia algo de saudável há no pequeno cemitério local, ou no rapaz que, tendo sobrevivido, ostenta um gancho no lugar da mão. Mesmo que sob a terra, todos ali têm lugar, medalha e glória; todos contribuíram para a vitória "do bem" na Segunda Guerra. A dor convive com a certeza.
O outro lado da história, o do pós-guerra, pode não ter mortes. Mas as perdas são mais graves: quem é o governo, quem é o Senado, quem são os comunistas? Não é apenas o roteirista que perdeu a identidade. É a nação inteira.
Saltando no tempo, aos EUA de hoje (já que o filme é feito hoje, para o público atual), pode-se indagar se tal identidade foi reencontrada. Há no mínimo razoável dúvida. "Cine Majestic" não trata disso, aparentemente. Entre suas muitas digressões, há lugar até para a nostalgia dos tempos de glória do cinema. Mas ela está lá, muito clara. E de contrabando.


Cine Majestic
The Majestic    
Direção: Frank Darabont
Produção: EUA, 2001
Com: Jim Carrey, Martin Landau
Quando: a partir de hoje nos cines Cinearte, Interlagos e circuito


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