UOL


São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Notícias do Gran Sertón


"Cartas a William Agel de Mello" traz missivas inéditas entre Guimarães Rosa e seu amigo e diplomata na década de 1960


De subordinado a amigo, William Agel de Mello foi destinatário de muitas cartas de João Guimarães Rosa até o ano da morte do autor, em 1967. O assunto que aflora entre as linhas cheias do estilo roseano são as pequenas coisas cotidianas e principalmente a procura de notícias sobre a tradução de "Grande Sertão: Veredas" para o espanhol, que estava sendo preparada para publicação naquele mesmo ano. Até agora inéditas, leia a seguir duas das cartas do romancista (a primeira delas reproduzida ao lado). As missivas fazem parte de "Cartas a William Agel de Mello", que a Ateliê Editorial lança este mês com notas do destinatário.
 
Rio, 20 de janeiro de 1967.
William Williãozão, catalão Discípulo inacertável...!
Recebi a gramática catalã; gratíssimo. Recebi palavras saudosas e simpáticas, cartões em belas pencas alegrificantes, alvissareiramente. Meu coração agradece. Mas... Como é que Você me deixa nesta ansiosa vacuidade, e não me envia importantes coisas concretas? Onde estão as revistas velhas, com coisas e moças catalãs, para a gente verificar se belas mesmo são, ou não? Por que, também, não obtém e me manda, da Editora, agora que Você é anfitrião e cumpincha, ao menos algumas páginas do livro, para eu sentir previamente o cheiro?! E -se o livro vai ser lançado no dia 30, por que é que não me remetem, logo, por via aérea, um antecipado exemplar- já que deve já estar aprontado?!... Enfim, fico a ver navios no seco, as mãos abanando sem reta direção, e no ar, e vazias até mesmo do ar dito... Como é possível? E dizer-se que coloquei aí, nesse posto-chave, um discípulo-amado! Oh, céus-e-terras de enganos, desvios e aflições... Oh, Goiás carrapichento. Você fala em "outra carta" (que teria sido já remetida...), com a "entrevista sua na Seix Barral" (1) Nada. Recebi nada. Chegou nada. Nanja. Nadíssimo. Nihil. Rien de tout. Nothing. Nichts. Nitchavó. Niente. Nulla res nada. Oh, William. William-nada, danada coisa e questão: -Houve, MESMO, tal carta?! Oooh... E a respeito daquela sutil cantada, em favor do nosso Morais (2), subfaminto e re-humilde, que não viu ainda a cor cerúlea de seus, de Você, lindos dólares, etc.? William, do restaurante chinês, rehabilite-se, logo, item por item, te esperamos, na curva te aguardamos. Recompareça. (-Concerne? -Convoque-se). Agora, por nímio favor, encaminhe à Editora, pessoalmente, rogo, esta anexa correspondência. E eu, então, parcialmente, te abençoarei.
Abraço vasto, magistral,
do Guimarães Rosa

P.S. - Seus Pais, como nunca duvidei, foram extremamente simpáticos, enviaram-me, de Goiânia, belo cartão de Boas Festas.

P.S. - Esteve aqui, ontem, simpaticíssimo, o Prof. Kury (3), falamos de Você, ele está fazendo um trabalho interpretativo de meu conto (nosso) "AS GARÇAS".

Notas de Agel de Mello

(1) Reproduzi, da maneira mais fiel possível, na língua catalã, a minha entrevista com o Senhor Barral

(2) O Moraes era o contínuo do Serviço e Demarcação de Fronteiras. Uma forma elegante de pedir ajuda para o funcionário mais modesto e necessitado.

(3) Adriano da Gama Kury, um dos mais renomados gramáticos brasileiros, autor de "O Meu Livro de Português" e da "Pequena Gramática" (...)

Rio, 21 de fevereiro de 1967
Don Williãozinho, probo e coroável:
Foi uma pena eu perder o seu telefonema de sexta-feira, eu estava acatalanicamente com febre em casa, jacente, oh, a natureza agride também os artistas, sofro-lhe os viros, miasmas e caprichos. E, como o nosso insignobre Portella, Vizconde de Altamar y Mariálucias (1), se desencontremos, digo, ei-lo que no domingo mesmo voou ad Guatemalam etc., em suas inveteradas funções de ad-hoc pombo-correio e Mercúrio, emissário de Júpiter, fiquei, digo, sem saber conteudisticamente o seu telefonema, o que disse Vuestra Goyanidad. Ohimè. Suponho, pois porém, tenha sido para comunicar-me e exultarmos a respeito da afinal surgida do GRAN SERTÓN: VEREDAS, livro esplendente. Isso, além da verdadeira e primacial essência de nossos telefonemas, telefonewilliemas: que é a de matar e esfolar saudades. Obrigado, Discípulo. Hei-de que, um dia, retribuirei. Vivamos.
De fato, já recebi, por via aérea, enviado pela Editora, o primeiro exemplar do livro. Tradução: formidabilíssima, um espetáculo! -e já escrevi ao nosso grande Angel Crespo (2), dizendo-lhe, a quente, minhas lautas sinceridades. Apresentação: esplêndida! -e é o que digo agora a Don Carlos Barral (3) (e Você, de viva voz, lhe repetirá em catalão), nesta missiva ou sobrecarta em anexo, que peço a Você, como sempre, seguramente destinatar.
Agora, sim, sei que a Espanha existe, com o Quixote, o Cid, Salamanca e touradas. Com o William, o de Catalão e do Serviço de Demarcação de Fronteiras, novel autor ainda inédito, linguista emérito, membro destacado do Clube dos Tâte-Fesses (4), digo, Bloco de Apalpa-Nádegas, para o qual pleito agora decreto dando-o como de "utilidade pública".
Iô Wi, quando calhar de Você estar com Don Carlos, diga-lhe para responder-me a respeito do "Corpo de Baile". O livro é enorme, conviria desde já o Crespo começar a tradução, e a Censura ser consultada. Gracias a Usted.
O outro nosso livrinho já está pronto, espero dentro de poucos dias entregá-lo à José Olympio. Título:
T U T A M É I A
-Terceiras Estórias-
e acho que está gostosíssimo. Você fez falta para a rev*sao derredeira (5). Espero que você esteja aqui, no entre meio e fim do ano, para o discreto e ribombante lançamento, se Deus quiser.
Há dias, estreei o guarda-chuva (6) novo, mágico, curto-longo, wílliamico, William-amico, funcionou lindo. deus te dê sempre dessas ótimas idéias.
Todos aqui temos saudades de Você, eu principalmente. O Moraes (7) também.
Mire vea: este abraço é forte, grande, grato, global, minasgerais (*)
do seu (*)
Guimarães Rosa

(*) Palavras (em itálico) manuscritas

Notas de Agel de Mello

(1) Arthur Portella, namorado de Maria Lúcia

(2) Angel Crespo, tradutor de "Grande Sertão" para a língua castelhana

(3) Carlos Barral, um dos proprietários da editora Seix Barral, a quem coube a idéia de traduzir o livro de Guimarães Rosa (...)

(4) Sem comentário...

(5) Fizemos a revisão de todos os livros do Mestre, para publicação. Eu lendo em voz alta, e ele acompanhando atentamente. Foi uma experiência enriquecedora. Ninguém teve esse privilégio. Pude conhecer com profundidade a obra de Guimarães Rosa, com comentários que ele fazia a respeito dos trechos mais interessantes e da interpretação dos simbolismos.

(6) Refere-se a um guarda-chuva que lhe mandei de presente de Paris

(7) O Moraes era o contínuo do Serviço e Demarcação de Fronteiras (...)


Texto Anterior: Direito autoral: STF dá parecer favorável ao Ecad
Próximo Texto: Crítica: Faceta doméstica e perfil psicológico são revelados em cartas de Guimarães Rosa
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.