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São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

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CRÍTICA

Faceta doméstica e perfil psicológico são revelados em cartas de Guimarães Rosa

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Nada acontece por acaso", costumava dizer João Guimarães Rosa (1908-1967). A frase é citada por William Agel de Mello ao se lembrar de quando conheceu o escritor mineiro. Mello, então em início de carreira diplomática, fora designado para trabalhar no Serviço de Demarcação de Fronteiras. Seu chefe: o autor do "Grande Sertão".
A amizade durou três anos, até a morte do romancista em 1967. Ela mantivera-se constante mesmo quando Mello fora lotado no Consulado-Geral do Brasil em Barcelona. As cartas que Guimarães Rosa lhe escrevera -até agora inéditas- formam o corpus deste volume.
São textos reveladores, por mostrarem um pouco da faceta doméstica e do perfil psicológico do escritor. Nesta época, viria a publicar-se, na Espanha, a versão em castelhano de Angel Crespo para "Grande Sertão: Veredas" ("Gran Sertón: Veredas"). Guimarães Rosa escreve ao antigo funcionário, que lhe serve de intermediário junto à editora, inquieto com a falta de "coisas concretas": "Por que é que Você não me mandou já, já, nem uma folha, sequer, de provas de "Grande Sertão'? (...) fico a ver navios no seco, as mãos abanando sem reta direção (...) Como é possível?".
Além disso, quer saber quando o editor Carlos Barral pretende mandar traduzir "Corpo de Baile" e publicar "Primeiras Estórias". Observa que as versões norte-americana e alemã "estão prontinhas" e que "na Alemanha ("Corps de Ballet') já está fazendo bom rumor". Pede a Agel de Mello que interceda junto a Barral. E brinca: "Se Você não botar isso a limpo, renego-te, perespúrio-te, desfraso-te, inintelijo-me contigo, trescuro-te, desbosso-te, transblasfemo-te!".
É neste espírito de galhofa ansiosa que vemos o escritor cuidar dos assuntos referentes à sua obra. Mesmo sendo, naquele estádio, um ficcionista respeitado, Guimarães Rosa deixa transparecer seu esforço e sua angústia em proveito de um reconhecimento autoral mais amplo.
Ele queria ser lido por todos, quer seja no Brasil quer na Espanha, na Alemanha e nos EUA -como sugere o singelo desenho, reproduzido no livro, das figuras correndo para casa com o exemplar de "Grande Sertão", uma das quais a cavalo ou no lombo do burro. Apesar da insegurança, Guimarães Rosa confia no sucesso. Mas Barral confidencia a Mello que, a despeito do vulto para as letras latino-americanas, a publicação do romance lhe trouxera prejuízo financeiro.
Afora acompanharmos a aflição de Guimarães Rosa com a divulgação da obra, flagramos o escritor em momentos mais relaxados, nos quais faz troça com os colegas do Itamaraty, elogia as "puras geometrias" do amigo João Cabral de Melo Neto e se deleita com as travessuras da neta no zoológico. Tudo vertido na prosa peculiaríssima do autor, cheia de trocadilhos, neologismos e brincadeiras prosódicas.
Mas o livro não poderia ser desfrutado inteiramente sem as notas do interlocutor. Mello, diplomata aposentado e também escritor, esclarece os nomes citados nas cartas e as circunstâncias da época, exibindo flashes de intimidade. Ele fala dos almoços diários no restaurante do Itamaraty, por exemplo, e da revisão em voz alta que ambos fizeram, de todos os livros de Guimarães Rosa, com o fito de publicação.
Trata-se de uma relação de mestre para discípulo, estimulada jocosamente pelo mineiro. Por fim, este homenageia o pupilo dando seu nome a um dos personagens de "Tutaméia - Terceiras Estórias": Iô Wi, Iô Williãozinho. Nada é por acaso.
Sente-se falta apenas, no livro, de uma introdução capaz de guiar-nos pelos meandros das referências epistolares. As idas e vindas entre esses itens e as notas de Agel de Mello brecam a fluência da leitura, criando um quebra-cabeça para o leitor. Ainda assim, é obra importante para quem gosta de Guimarães Rosa ou para quem quer conhecê-lo.


Avaliação:    

A OBRA

Livro: Cartas a William Agel de Mello
Autor: João Guimarães Rosa
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: preço ainda não definido


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