|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Faceta doméstica e perfil psicológico são revelados em cartas de Guimarães Rosa
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Nada acontece por acaso",
costumava dizer João
Guimarães Rosa (1908-1967). A
frase é citada por William Agel de
Mello ao se lembrar de quando
conheceu o escritor mineiro. Mello, então em início de carreira diplomática, fora designado para
trabalhar no Serviço de Demarcação de Fronteiras. Seu chefe: o autor do "Grande Sertão".
A amizade durou três anos, até a
morte do romancista em 1967. Ela
mantivera-se constante mesmo
quando Mello fora lotado no
Consulado-Geral do Brasil em
Barcelona. As cartas que Guimarães Rosa lhe escrevera -até agora inéditas- formam o corpus
deste volume.
São textos reveladores, por
mostrarem um pouco da faceta
doméstica e do perfil psicológico
do escritor. Nesta época, viria a
publicar-se, na Espanha, a versão
em castelhano de Angel Crespo
para "Grande Sertão: Veredas"
("Gran Sertón: Veredas"). Guimarães Rosa escreve ao antigo
funcionário, que lhe serve de intermediário junto à editora, inquieto com a falta de "coisas concretas": "Por que é que Você não
me mandou já, já, nem uma folha,
sequer, de provas de "Grande Sertão'? (...) fico a ver navios no seco,
as mãos abanando sem reta direção (...) Como é possível?".
Além disso, quer saber quando
o editor Carlos Barral pretende
mandar traduzir "Corpo de Baile"
e publicar "Primeiras Estórias".
Observa que as versões norte-americana e alemã "estão prontinhas" e que "na Alemanha
("Corps de Ballet') já está fazendo
bom rumor". Pede a Agel de Mello que interceda junto a Barral. E
brinca: "Se Você não botar isso a
limpo, renego-te, perespúrio-te,
desfraso-te, inintelijo-me contigo,
trescuro-te, desbosso-te, transblasfemo-te!".
É neste espírito de galhofa ansiosa que vemos o escritor cuidar
dos assuntos referentes à sua
obra. Mesmo sendo, naquele estádio, um ficcionista respeitado,
Guimarães Rosa deixa transparecer seu esforço e sua angústia em
proveito de um reconhecimento
autoral mais amplo.
Ele queria ser lido por todos,
quer seja no Brasil quer na Espanha, na Alemanha e nos EUA
-como sugere o singelo desenho, reproduzido no livro, das figuras correndo para casa com o
exemplar de "Grande Sertão",
uma das quais a cavalo ou no
lombo do burro. Apesar da insegurança, Guimarães Rosa confia
no sucesso. Mas Barral confidencia a Mello que, a despeito do vulto para as letras latino-americanas, a publicação do romance lhe
trouxera prejuízo financeiro.
Afora acompanharmos a aflição
de Guimarães Rosa com a divulgação da obra, flagramos o escritor em momentos mais relaxados,
nos quais faz troça com os colegas
do Itamaraty, elogia as "puras
geometrias" do amigo João Cabral de Melo Neto e se deleita com
as travessuras da neta no zoológico. Tudo vertido na prosa peculiaríssima do autor, cheia de trocadilhos, neologismos e brincadeiras
prosódicas.
Mas o livro não poderia ser desfrutado inteiramente sem as notas
do interlocutor. Mello, diplomata
aposentado e também escritor,
esclarece os nomes citados nas
cartas e as circunstâncias da época, exibindo flashes de intimidade. Ele fala dos almoços diários no
restaurante do Itamaraty, por
exemplo, e da revisão em voz alta
que ambos fizeram, de todos os livros de Guimarães Rosa, com o fito de publicação.
Trata-se de uma relação de mestre para discípulo, estimulada jocosamente pelo mineiro. Por fim,
este homenageia o pupilo dando
seu nome a um dos personagens
de "Tutaméia - Terceiras Estórias": Iô Wi, Iô Williãozinho. Nada é por acaso.
Sente-se falta apenas, no livro,
de uma introdução capaz de
guiar-nos pelos meandros das referências epistolares. As idas e
vindas entre esses itens e as notas
de Agel de Mello brecam a fluência da leitura, criando um quebra-cabeça para o leitor. Ainda assim,
é obra importante para quem gosta de Guimarães Rosa ou para
quem quer conhecê-lo.
Avaliação:
A OBRA
Livro: Cartas a William Agel de Mello
Autor: João Guimarães Rosa
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: preço ainda não definido
Texto Anterior: Inéditos: Notícias do Gran Sertón Próximo Texto: Livro - lançamento - "Trittico romano": Papa cria mistura polêmica entre teologia e poesia Índice
|