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LIVRO/LANÇAMENTO
"TRITTICO ROMANO"
Livro de versos de João Paulo 2º é testamento espiritual
Papa cria mistura polêmica entre teologia e poesia
EDUARDO SIMANTOB
DE ZURIQUE
Karol Wojtyla já possuía uma
extensa produção dramatúrgica
("A Loja do Ourives" é a peça
mais famosa) e literária ("Amor e
Responsabilidade" e os poemas
de "Balada dos Portões de Wawel"). Depois que se tornou papa,
o volume de seus escritos aproxima-se do monumental: 13 encíclicas, 12 exortações apostólicas, 38
cartas apostólicas e milhares de
discursos. Mas é em um livro de
poemas, composto originalmente
em modestas 14 páginas manuscritas em polonês, que João Paulo
2º apresenta seu testamento espiritual, provocando uma intensa
perplexidade.
"Trittico Romano" (Tríptico
Romano), subtítulo "Meditações", tem sua capa ilustrada por
um detalhe da obra máxima de
Michelângelo, as mãos de Deus e
do homem, tão semelhantes, buscando o toque na Capela Sistina.
Antes de ser publicado na Itália,
em março, já havia sido editado
discretamente por uma editora de
Cracóvia (Polônia).
Supostamente não se trata de
obra dogmática ou pastoral, mas
de uma reflexão em versos a respeito da fé, do gênio humano, da
morte, assim como de sua própria
morte e do que será além dela.
O que causa estranheza é o fato
de o Vaticano publicar uma obra
tão pessoal, como se pretende
"Trittico Romano", com o papa
ainda vivo. João 23, como exemplo mais próximo, também teve
seus diários publicados, mas postumamente. Para Giancarlo Zizola, um dos mais respeitados vaticanistas da Itália, não há dúvida
nenhuma. A publicação tem um
sentido claramente político.
"Não há nada de íntimo nos
poemas", disse Zizola à Folha, "e
é isso que torna as meditações do
papa discutíveis". O vaticanista
acha "estranho" João Paulo 2º
partir do misticismo para desembocar numa reflexão sobre as instituições ecumênicas, confundindo, segundo diz, a meditação íntima com o sistema pontifical.
O trecho mais polêmico, que inclusive ofuscou qualquer discussão a respeito dos méritos literários do livro, é justamente em que
João Paulo 2º comenta o conclave
que o elegeu papa e o próximo,
que decidirá sua sucessão no trono de Pedro. O tema toma todo o
epílogo da segunda parte, dedicada à reflexão acerca da criação, da
presença divina e do gênio humano, encarnado em Michelângelo.
A "policromia sistina" do artista, que tornou visível o invisível (o
começo e o fim, a Gênese e o Juízo
Final), é mais que mero cenário
da eleição papal. O poeta agora
papa exorta os cardeais: "É preciso que, na ocasião do conclave,
Michelângelo ensine ao povo/
Não te esqueça: "omnia nuda et
aperta sunt ante oculos Eius" [tudo é descoberto e evidente diante
de Seus olhos"".
Zizola argumenta que o conclave é uma instituição humana, não
uma revelação divina. "A reflexão
do papa oferece um significado
escatológico da história do mundo até o Juízo Final e ainda se mete a dar uma orientação aos eleitores do conclave, como se pretendesse perpetuar seu papel depois
de sua morte."
O vaticanista americano John
Allen Jr. disse que também não é
crítico literário, mas reconhece
que o trecho provoca ainda mais
especulações sobre a sucessão papal. Especulações que já vêm se
multiplicando na mesma medida
em que a saúde de João Paulo 2º
dá sinais de fraquejar.
Para além da sucessão, fica o debate sobre sua ousadia em misturar poesia e teologia. Esse tabu é
levantado tanto nas críticas como
nos elogios, mas o papa resiste à
sua maneira, assumidamente humana, enfatizando em seus versos
livres que, "para encontrar a nascente, é preciso prosseguir por cima, contra a corrente".
TRITTICO ROMANO - Autor: João Paulo
2º. Editora: Libreria Editrice Vaticana.
Quanto: 15 euros (aproximadamente R$
52; 52 págs.). Onde encomendar:
www.libreriaeditricevaticana.com/it/sales/
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