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São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"MEMÓRIAS DE UM GIGOLÔ" e "ÓPERA DE SABÃO"

O retorno do cronista picaresco de São Paulo

MARÇAL AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Difícil pensar num escritor mais paulistano. E mais versátil. Tanto nos romances e contos de sua ficção adulta quanto nas narrativas juvenis, e também nos roteiros, crônicas e peças de teatro que escreveu, Marcos Rey (1925-1999) sempre privilegiou a cidade de São Paulo como cenário e um recorte muito particular de sua fauna humana como personagens.
Marcos Rey era um profissional da escrita, viveu de escrever até o fim. Sua versatilidade, porém, acabou custando caro. Foi sua glória e miséria. Ao morrer, ele ainda carregava a desconfiança de que parte da crítica não olhava sua obra adulta com boa vontade, como se as outras ocupações de sua escrita desabonassem, de alguma maneira, o grande escritor que inegavelmente ele era. Achava isso um caso de rigidez crítica, que não foi atenuada nem pelos prêmios (ganhou o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano em 1995 e duas vezes o Prêmio Jabuti, entre outros), nem pelo sucesso de público (um de seus títulos juvenis, "O Mistério do Cinco Estrelas", já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares) ou pelas traduções no exterior.
Agora, surge uma boa oportunidade de reavaliação: parte de sua obra começa a ser republicada pela Companhia das Letras. E os dois primeiros volumes relançados, os romances "Memórias de um Gigolô" e "Ópera de Sabão", são uma excelente amostragem da prosa adulta de Marcos Rey.
Nascido no Brás, ele soube, como poucos, captar uma certa dicção paulistana e temperar com um humor de linhagem picaresca o retrato que fez de épocas e personagens da cidade. Os dois livros evidenciam também a maior ambição deste escritor: contar histórias, de preferência boas histórias.
Publicado originalmente em 1968, "Memórias de um Gigolô" serviu de matriz para um filme e para uma minissérie da Globo, ambos de grande sucesso. Narra a história de Mariano, rapaz criado num bordel, que se apaixona pela prostituta Guadalupe. A partir daí, os dois passam por uma trepidante sucessão de peripécias, sempre com o objetivo de se dar bem na vida, enquanto escapam do onipresente Esmeraldo, o antigo cafetão da moça.
É uma São Paulo em transformação o pano de fundo do romance, captada com uma ironia afetuosa pelo olhar de Marcos Rey. Ele sabia do que falava: auto-intitulado "boêmio profissional", o escritor se valeu de suas andanças pelo território da noite paulistana para observar e registrar modos e falas, que acabaram incorporados à sua ficção.
"Ópera de Sabão", lançado em 1979, se apóia em outra faceta da experiência de vida do autor. Marcos Rey se utiliza de sua passagem pelo rádio para recriar as implicações do suicídio de Getúlio Vargas na vida de uma família paulistana. De novo, ele coloca em cena o humor picaresco e personagens que se entregam, sem pudor, ao jogo da mobilidade social. Tanto neste livro quanto em "Memórias de um Gigolô", o final feliz é comprometido por um travo amargo, dando razão ao escritor João Antônio, que chamou de "realismo crítico" a literatura praticada por Marcos Rey.
Além da reedição de sua obra adulta, há outra boa notícia para os fãs de Marcos Rey: o jornalista Carlos Maranhão está preparando sua biografia, que, com certeza, trará à tona histórias tão saborosas quanto as que o autor registrou em seus livros. Uma delas: Marcos costumava dizer que tinha escrito de tudo na vida, menos letra de samba e poesia. E logo depois se corrigia, lembrando que chegara a cometer versos, ainda que de brincadeira. E resgatava uma tarde ociosa em que ele e o dramaturgo Braulio Pedroso, também já morto, "inventaram" um poeta latino-americano e escreveram em parceria um engajado livro de poemas.
A molecagem não terminou aí -e a dupla inscreveu o volume num concurso de poesias. Eram tempos sombrios e, claro, os versos panfletários caíram no gosto do júri, que apontou a obra como vencedora do concurso. Com isso, criou um inusitado problema para os "ghost-writers" na hora de receber o dinheiro do prêmio.
Marcos Rey, em síntese, foi isso: um grande contador de histórias. Nos livros e fora deles.


Marçal Aquino é escritor e roteirista de cinema.


Memórias de um Gigolô
    


Ópera de Sabão
    
Autor: Marcos Rey Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 36 (cada volume)


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