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DRAUZIO VARELLA
Tributo a Charles Darwin
Charles Darwin (1809-1882) visitou o Brasil em
1831, embora poucos saibam disso. O cientista que explicou a origem das espécies através do mecanismo de competição e seleção
natural, a maior descoberta de
todos os tempos na biologia, ficou
boquiaberto ao conhecer a mata
atlântica e escreveu em seu diário, a bordo do Beagle:
"O dia transcorreu maravilhosamente. Deleite, entretanto, é
uma palavra fraca para expressar
os sentimentos de um naturalista
que, pela primeira vez, passeia sozinho numa floresta brasileira.
Em meio à profusão de objetos
notáveis, a exuberância geral da
vegetação ganha longe. A elegância das gramas, a novidade das
plantas parasitas, a beleza das
flores, o verde lustroso da folhagem, tudo leva a isso. Uma mistura paradoxal de som e silêncio
impregna as partes sombreadas
da floresta. O ruído dos insetos é
tão alto que pode ser ouvido até
mesmo num navio ancorado a
várias jardas da praia; dentro dos
recessos da floresta, no entanto,
parece reinar um silêncio universal. Para alguém que gosta de história natural, um dia como esse
traz nele um prazer mais profundo do que se possa jamais experimentar".
Se Darwin tivesse visitado o lugar em que me encontro agora,
no meio da floresta amazônica,
às margens do rio Cuieras,
afluente do Negro, teria visto uma
mata tão densa que nela uma
pessoa, ao se afastar dez metros
da outra, desaparece atrás da infinidade de troncos, cipós tortuosos e arvoretas delgadas em competição pelas alturas.
Diferentemente das imagens
idealizadas, árvores de troncos
grossos são raras. A luta pela sobrevivência depende diretamente
da habilidade de cada indivíduo
expor suas placas captadoras de
energia (as folhas) à ação da luz.
De que adianta uma árvore desperdiçar energia no crescimento
horizontal se suas folhas não chegarem ao alto? Ficarão estioladas
na penumbra do interior da mata, sobrevivendo raquíticas com
as migalhas douradas dos feixes
luminosos que se intrometem entre as copas, que formam o dossel
sinuoso, de infinitas tonalidades
de verde a revestir o teto da floresta.
No entanto a aparência delgada, longilínea, dos troncos surpreende quem tenta vergá-los.
São fibrosos e resistentes desde os
primeiros centímetros de altura; o
facão canta ao bater de costas
contra eles.
Pendentes, com as garras fincadas nas árvores que tiveram sucesso em alcançar o topo do dossel, os cipós desenham um emaranhado confuso, insensíveis à largura dos troncos que galgam
-dos mais finos aos monumentais, todos servem de escada a
eles. Economizam o máximo de
energia no suporte da subida, para utilizá-la com força no buquê
de folhas que expõem à luz quando julgam a oportunidade propícia.
Além do cipoal, os troncos servem de suporte a parasitas, filodendros com folhas cordiformes e
orquídeas floridas que se prendem em alturas variadas para
captar a luz filtrada, indireta,
adequada a sua fotossíntese. Bromélias aproveitam as forquilhas
mais altas para expor suas folhas
carnosas, concêntricas, permanentemente embebidas na água
que acumulam. Manchas de fungos salpicadas ou em faixas concêntricas colorem as cascas de
matizes verde-claros. Entre elas,
tufos quase microscópicos de
briófitas filiformes mimetizando
microssamambaias, gramíneas e
avencas miúdas constituem uma
floresta particular, visível em seus
detalhes apenas à magnificação
das lupas.
Se a vista armada consegue chegar às copas mais altas, o binóculo pode discernir abelhas, vespas e
besouros rodeando as flores em
busca do néctar fertilizante.
Quando se detém nos detalhes encobertos pelo verde onipresente, o
olhar mais atento percebe que a
floresta é florida. As flores são geralmente pequenas e numerosas,
contraditoriamente discretas para exercer as funções sexuais de
indivíduos de tamanha altura;
mas também podem ser grandes e
espalhafatosas para disputar a
atenção dos polinizadores.
Raízes gigantes, cipós, parasitas, bromélias, filodendros, bolores, briófitas minúsculas, insetos
voadores, formigas, termitas que
constroem grandes casas de terra
agarradas aos troncos, e seres microscópicos fazem de cada árvore
um nicho ecológico peculiar, de
complexidade biológica ainda
mal compreendida. A interferência intempestiva nas condições de
uma dessas formas de vida pode
destruir o equilíbrio existente entre as demais.
As diferentes fases de crescimento em que se encontram árvores, arbustos, cipós, samambaias e palmeiras de vários tipos e
tamanhos conferem à floresta um
contínuo de alturas que vai das
mudas recém-brotadas a um palmo do chão ao topo das árvores
majestosas. A variedade de formas é inacreditável; até onde a
vista alcança, é raro encontrar
duas árvores da mesma espécie.
Aqui, biodiversidade não é mero
conceito teórico.
O chão da floresta é um cenário
coberto por folhas, frutos e gravetos que estalam ao pisar, dispostos aleatoriamente num espetáculo colorido com todas as tonalidades possíveis entre o amarelo-claro e o marrom mais escuro. Esparsos entre a folhagem seca,
emergem tufos verdes de plantinhas recém-nascidas, em competição pela sobrevivência. Troncos
de árvores caídas, úmidos, embolorados, cobertos de líquens e cogumelos coloridos quebram a monotonia plana do chão, numa demonstração clara de que a floresta é um organismo pulsátil, delicadamente equilibrado entre a
vida e a morte revitalizadora.
Se Charles Darwin estivesse sentado onde estou, ouviria o cantar
dos pássaros, o piado metálico e
intervalado do capitão-do-mato,
ave denunciadora da presença de
estranhos em seu território, e a algazarra ensurdecedora dos grilos
e das cigarras indolentes. Sem a
proteção de repelentes químicos,
seria picado por mosquitos, mas
estaria muito feliz. Sentiria na pele curtida pelo frio da Inglaterra a
sensualidade úmida, pegajosa, de
uma manhã na floresta amazônica.
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