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São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

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DRAUZIO VARELLA

Tributo a Charles Darwin

Charles Darwin (1809-1882) visitou o Brasil em 1831, embora poucos saibam disso. O cientista que explicou a origem das espécies através do mecanismo de competição e seleção natural, a maior descoberta de todos os tempos na biologia, ficou boquiaberto ao conhecer a mata atlântica e escreveu em seu diário, a bordo do Beagle:
"O dia transcorreu maravilhosamente. Deleite, entretanto, é uma palavra fraca para expressar os sentimentos de um naturalista que, pela primeira vez, passeia sozinho numa floresta brasileira. Em meio à profusão de objetos notáveis, a exuberância geral da vegetação ganha longe. A elegância das gramas, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde lustroso da folhagem, tudo leva a isso. Uma mistura paradoxal de som e silêncio impregna as partes sombreadas da floresta. O ruído dos insetos é tão alto que pode ser ouvido até mesmo num navio ancorado a várias jardas da praia; dentro dos recessos da floresta, no entanto, parece reinar um silêncio universal. Para alguém que gosta de história natural, um dia como esse traz nele um prazer mais profundo do que se possa jamais experimentar".
Se Darwin tivesse visitado o lugar em que me encontro agora, no meio da floresta amazônica, às margens do rio Cuieras, afluente do Negro, teria visto uma mata tão densa que nela uma pessoa, ao se afastar dez metros da outra, desaparece atrás da infinidade de troncos, cipós tortuosos e arvoretas delgadas em competição pelas alturas.
Diferentemente das imagens idealizadas, árvores de troncos grossos são raras. A luta pela sobrevivência depende diretamente da habilidade de cada indivíduo expor suas placas captadoras de energia (as folhas) à ação da luz. De que adianta uma árvore desperdiçar energia no crescimento horizontal se suas folhas não chegarem ao alto? Ficarão estioladas na penumbra do interior da mata, sobrevivendo raquíticas com as migalhas douradas dos feixes luminosos que se intrometem entre as copas, que formam o dossel sinuoso, de infinitas tonalidades de verde a revestir o teto da floresta.
No entanto a aparência delgada, longilínea, dos troncos surpreende quem tenta vergá-los. São fibrosos e resistentes desde os primeiros centímetros de altura; o facão canta ao bater de costas contra eles.
Pendentes, com as garras fincadas nas árvores que tiveram sucesso em alcançar o topo do dossel, os cipós desenham um emaranhado confuso, insensíveis à largura dos troncos que galgam -dos mais finos aos monumentais, todos servem de escada a eles. Economizam o máximo de energia no suporte da subida, para utilizá-la com força no buquê de folhas que expõem à luz quando julgam a oportunidade propícia.
Além do cipoal, os troncos servem de suporte a parasitas, filodendros com folhas cordiformes e orquídeas floridas que se prendem em alturas variadas para captar a luz filtrada, indireta, adequada a sua fotossíntese. Bromélias aproveitam as forquilhas mais altas para expor suas folhas carnosas, concêntricas, permanentemente embebidas na água que acumulam. Manchas de fungos salpicadas ou em faixas concêntricas colorem as cascas de matizes verde-claros. Entre elas, tufos quase microscópicos de briófitas filiformes mimetizando microssamambaias, gramíneas e avencas miúdas constituem uma floresta particular, visível em seus detalhes apenas à magnificação das lupas.
Se a vista armada consegue chegar às copas mais altas, o binóculo pode discernir abelhas, vespas e besouros rodeando as flores em busca do néctar fertilizante. Quando se detém nos detalhes encobertos pelo verde onipresente, o olhar mais atento percebe que a floresta é florida. As flores são geralmente pequenas e numerosas, contraditoriamente discretas para exercer as funções sexuais de indivíduos de tamanha altura; mas também podem ser grandes e espalhafatosas para disputar a atenção dos polinizadores.
Raízes gigantes, cipós, parasitas, bromélias, filodendros, bolores, briófitas minúsculas, insetos voadores, formigas, termitas que constroem grandes casas de terra agarradas aos troncos, e seres microscópicos fazem de cada árvore um nicho ecológico peculiar, de complexidade biológica ainda mal compreendida. A interferência intempestiva nas condições de uma dessas formas de vida pode destruir o equilíbrio existente entre as demais.
As diferentes fases de crescimento em que se encontram árvores, arbustos, cipós, samambaias e palmeiras de vários tipos e tamanhos conferem à floresta um contínuo de alturas que vai das mudas recém-brotadas a um palmo do chão ao topo das árvores majestosas. A variedade de formas é inacreditável; até onde a vista alcança, é raro encontrar duas árvores da mesma espécie. Aqui, biodiversidade não é mero conceito teórico.
O chão da floresta é um cenário coberto por folhas, frutos e gravetos que estalam ao pisar, dispostos aleatoriamente num espetáculo colorido com todas as tonalidades possíveis entre o amarelo-claro e o marrom mais escuro. Esparsos entre a folhagem seca, emergem tufos verdes de plantinhas recém-nascidas, em competição pela sobrevivência. Troncos de árvores caídas, úmidos, embolorados, cobertos de líquens e cogumelos coloridos quebram a monotonia plana do chão, numa demonstração clara de que a floresta é um organismo pulsátil, delicadamente equilibrado entre a vida e a morte revitalizadora.
Se Charles Darwin estivesse sentado onde estou, ouviria o cantar dos pássaros, o piado metálico e intervalado do capitão-do-mato, ave denunciadora da presença de estranhos em seu território, e a algazarra ensurdecedora dos grilos e das cigarras indolentes. Sem a proteção de repelentes químicos, seria picado por mosquitos, mas estaria muito feliz. Sentiria na pele curtida pelo frio da Inglaterra a sensualidade úmida, pegajosa, de uma manhã na floresta amazônica.


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