São Paulo, Segunda-feira, 05 de Abril de 1999
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FERNANDO GABEIRA
Brasil pode ser campeão do mundo em CPI


Comprar livros pela Internet é um método moderno e fácil. O difícil é recebê-los. As encomendas demoram tanto a chegar que lembram uma história em quadrinhos na qual o trem não conseguia chegar a Brejo Seco durante a guerra. Os números dos jornais foram se acumulando e chegaram, todos de uma só vez, ao final do conflito armado. A população decidiu ler tudo pela ordem cronológica, das primeiras escaramuças até a notícia da vitória.
Encomendei os livros para me situar melhor na crise econômica e contribuir para a discussão sobre os caminhos. Agora que chegaram, quase não se fala mais na crise econômica, soterrada que foi pelas distintas iniciativas de abrir uma assim chamada agenda positiva. Em outras palavras, a força da sociedade de espetáculo cria as próprias barreiras para uma busca conjunta de alternativas.
Entre os poucos livros que eu consegui encomendar (lembrando que a crise ficou bem visível com a alta do dólar), há um que merecia ser consultado para enriquecer o debate brasileiro.
É uma coletânea de artigos de pesquisadores e economistas sobre a América Latina*, que foram elogiados por Jeffrey Sachs e Jorge Castañeda, o autor mexicano que já nos visitou algumas vezes. Castañeda tem uma frase interessante sobre o livro: "Após anos olhando a esquerda latino-americana caminhar hesitantemente para o centro, finalmente o centro se move em direção à esquerda".
De fato, o propósito dos autores poderia ser um fundamento para um programa de centro-esquerda: buscar mais igualdade social e eficiência sem entrar em choque com o mercado. Os autores sabem bem que não se pode lançar mão de fórmulas populistas; para eles, são caminhos insustentáveis, política e economicamente. Mas esse debate não pode ser feito agora, porque a crise não acabou.
Mas é como se ela tivesse acabado. O grande teatro criado em torno das CPIs pelos grandes partidos ofuscou uma questão vital: estamos saindo da crise no melhor ritmo possível? Primeiro era preciso chegar a um porto mais ou menos seguro, a um nível de equilíbrio. Para isso, vejo uma tendência fundamental: exportar mais, importar menos.
O governo não fala se vai colocar dinheiro nisso ou apenas contar com bancos estrangeiros. Nem explica se há ainda uma pequena margem de substituição de importações e se ela está sendo ocupada.
Tudo isso parece muito chato, sobretudo num momento em que podem surgir denúncias espetaculares. Pode parecer ridícula a minha pretensão de que os brasileiros passem a consumir preferencialmente produtos nacionais sempre que estiverem satisfeitos com eles.
Com toda a fragmentação que vivemos, levando chicotadas da Tiazinha, vendo orelhas transitarem pelo correio, acredito sinceramente que poderia haver uma visão nacional da nossa crise, uma visão ampla que inclusive informasse nossas opções econômicas individuais, sem naturalmente constrangê-las.
O primeiro ponto era chegar a um patamar de segurança, ainda que mais baixo que o de antes da crise. O segundo, então, seria pôr em discussão a questão que os economistas moderados colocam: como distribuir a renda, como realizar o enorme potencial econômico das populações que têm suas chances bloqueadas?
Não tenho a mínima intenção de discutir programas numa segunda-feira. Só me interrogo sobre o espaço da discussão específica da crise e suas saídas. Vem um partido grande e diz que o problema central no momento é investigar a Justiça. Um outro partido acha que é investigar o sistema financeiro. Tudo bem. Se eles gostam de investigar e têm talento para isso, que o façam. Mas, assim, o mundo político vai se concentrando nesses temas e a crise vai sumindo no horizonte.
Do lado da sociedade, pelo menos se levarmos em conta a Igreja Católica, os apelos são outros. As pessoas estão interessadas em saber do emprego, do que se pode fazer agora para atenuar a crise. E que caminhos trilhar para que se chegue a um nível de crescimento e igualdade social aceitáveis, o que não se obteve com a onda de reformas liberais no continente.
Os grande partidos dizem que são a Justiça e sistema financeiro os problemas-chave. Singelamente o IBGE, revelando o índice de mortalidade de jovens no Rio e em São Paulo, aponta para outra direção. Quem sabe esses números não caem um dia nas mãos dos senadores da República, num desses passes de mágica em que a realidade atravessa o lago e irrompe molhada numa sessão.
Outro dia vi uma entrevista inteligente de David Landes, historiador que escreveu "A Riqueza e a Pobreza das Nações". Lucas Mendes lembrou, num certo momento, que a industrialização no Brasil foi bloqueada por Portugal e pela Inglaterra. Ele começou respondendo assim: "Em primeiro lugar, não se deve obedecer a tudo o que nos mandam fazer...".
É uma visão desconcertante, que nos remete à tendência de obedecer. Acho que é muito limitado criticar os grandes partidos e a mídia por escaparem dos problemas reais. Basta não aceitar a agenda deles. Novos debates e novas mídias acabam surgindo daí.
O momento hoje é o de questionar a usina que produz a agenda positiva do Brasil. O risco é de ser excluído do chamado debate central. Mas é até melhor. Combateremos à sombra. Tenho grande respeito pelas pessoas preocupadas com juízes contratando a própria família, ou com os bancos que compraram dólar abaixo do preço. Tudo isso são coisas importantes para o funcionamento do governo.
No entanto, a vida num continente tão desigual é um desafio enorme para as gerações que ainda acreditam que a política é necessária. Se não equacionarmos melhor o problema da distribuição de renda, que o populismo não resolveu, ficaremos cada vez mais reduzidos a inventar um novo espetáculo a cada semana para mascarar o abismo de nosso fracasso.


* "Beyond Tradeoffs", editado por Nancy Birdsall, Carol Graham e Richard H. Sabot (Brookings Institution, 1998)


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