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FERNANDO GABEIRA
Brasil pode ser campeão do mundo em CPI
Comprar livros pela Internet
é um método moderno e fácil. O
difícil é recebê-los. As encomendas demoram tanto a chegar que lembram uma história
em quadrinhos na qual o trem
não conseguia chegar a Brejo
Seco durante a guerra. Os números dos jornais foram se acumulando e chegaram, todos de
uma só vez, ao final do conflito
armado. A população decidiu
ler tudo pela ordem cronológica, das primeiras escaramuças
até a notícia da vitória.
Encomendei os livros para me
situar melhor na crise econômica e contribuir para a discussão sobre os caminhos. Agora que chegaram, quase não se
fala mais na crise econômica,
soterrada que foi pelas distintas iniciativas de abrir uma assim chamada agenda positiva.
Em outras palavras, a força da
sociedade de espetáculo cria as
próprias barreiras para uma
busca conjunta de alternativas.
Entre os poucos livros que eu
consegui encomendar (lembrando que a crise ficou bem
visível com a alta do dólar), há
um que merecia ser consultado
para enriquecer o debate brasileiro.
É uma coletânea de artigos de
pesquisadores e economistas
sobre a América Latina*, que
foram elogiados por Jeffrey
Sachs e Jorge Castañeda, o autor mexicano que já nos visitou
algumas vezes. Castañeda tem
uma frase interessante sobre o
livro: "Após anos olhando a esquerda latino-americana caminhar hesitantemente para o
centro, finalmente o centro se
move em direção à esquerda".
De fato, o propósito dos autores poderia ser um fundamento
para um programa de centro-esquerda: buscar mais igualdade social e eficiência sem entrar
em choque com o mercado. Os
autores sabem bem que não se
pode lançar mão de fórmulas
populistas; para eles, são caminhos insustentáveis, política e
economicamente. Mas esse debate não pode ser feito agora,
porque a crise não acabou.
Mas é como se ela tivesse acabado. O grande teatro criado
em torno das CPIs pelos grandes partidos ofuscou uma questão vital: estamos saindo da
crise no melhor ritmo possível?
Primeiro era preciso chegar a
um porto mais ou menos seguro, a um nível de equilíbrio. Para isso, vejo uma tendência
fundamental: exportar mais,
importar menos.
O governo não fala se vai colocar dinheiro nisso ou apenas
contar com bancos estrangeiros. Nem explica se há ainda
uma pequena margem de substituição de importações e se ela
está sendo ocupada.
Tudo isso parece muito chato,
sobretudo num momento em
que podem surgir denúncias espetaculares. Pode parecer ridícula a minha pretensão de que
os brasileiros passem a consumir preferencialmente produtos nacionais sempre que estiverem satisfeitos com eles.
Com toda a fragmentação
que vivemos, levando chicotadas da Tiazinha, vendo orelhas
transitarem pelo correio, acredito sinceramente que poderia
haver uma visão nacional da
nossa crise, uma visão ampla
que inclusive informasse nossas opções econômicas individuais, sem naturalmente constrangê-las.
O primeiro ponto era chegar a
um patamar de segurança, ainda que mais baixo que o de antes da crise. O segundo, então,
seria pôr em discussão a questão que os economistas moderados colocam: como distribuir
a renda, como realizar o enorme potencial econômico das
populações que têm suas chances bloqueadas?
Não tenho a mínima intenção de discutir programas numa segunda-feira. Só me interrogo sobre o espaço da discussão específica da crise e suas
saídas. Vem um partido grande
e diz que o problema central no
momento é investigar a Justiça.
Um outro partido acha que é
investigar o sistema financeiro.
Tudo bem. Se eles gostam de investigar e têm talento para isso,
que o façam. Mas, assim, o
mundo político vai se concentrando nesses temas e a crise
vai sumindo no horizonte.
Do lado da sociedade, pelo
menos se levarmos em conta a
Igreja Católica, os apelos são
outros. As pessoas estão interessadas em saber do emprego,
do que se pode fazer agora para
atenuar a crise. E que caminhos trilhar para que se chegue
a um nível de crescimento e
igualdade social aceitáveis, o
que não se obteve com a onda
de reformas liberais no continente.
Os grande partidos dizem que
são a Justiça e sistema financeiro os problemas-chave. Singelamente o IBGE, revelando o
índice de mortalidade de jovens no Rio e em São Paulo,
aponta para outra direção.
Quem sabe esses números não
caem um dia nas mãos dos senadores da República, num
desses passes de mágica em que
a realidade atravessa o lago e
irrompe molhada numa sessão.
Outro dia vi uma entrevista
inteligente de David Landes,
historiador que escreveu "A Riqueza e a Pobreza das Nações".
Lucas Mendes lembrou, num
certo momento, que a industrialização no Brasil foi bloqueada por Portugal e pela Inglaterra. Ele começou respondendo assim: "Em primeiro lugar, não se deve obedecer a tudo o que nos mandam fazer...".
É uma visão desconcertante,
que nos remete à tendência de
obedecer. Acho que é muito limitado criticar os grandes partidos e a mídia por escaparem
dos problemas reais. Basta não
aceitar a agenda deles. Novos
debates e novas mídias acabam
surgindo daí.
O momento hoje é o de questionar a usina que produz a
agenda positiva do Brasil. O
risco é de ser excluído do chamado debate central. Mas é até
melhor. Combateremos à sombra. Tenho grande respeito pelas pessoas preocupadas com
juízes contratando a própria
família, ou com os bancos que
compraram dólar abaixo do
preço. Tudo isso são coisas importantes para o funcionamento do governo.
No entanto, a vida num continente tão desigual é um desafio enorme para as gerações
que ainda acreditam que a política é necessária. Se não equacionarmos melhor o problema
da distribuição de renda, que o
populismo não resolveu, ficaremos cada vez mais reduzidos a
inventar um novo espetáculo a
cada semana para mascarar o
abismo de nosso fracasso.
* "Beyond Tradeoffs", editado por Nancy Birdsall, Carol Graham e Richard H. Sabot (Brookings
Institution, 1998)
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