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CRÍTICA/"CACHÉ"
Filme utiliza recursos sedutores do cinema moderno, mas reserva uma face estranhamente opressiva
Michael Haneke discute overdose de imagens
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Há mais de uma história escondida em "Caché". Na
mais evidente, Georges (Daniel
Auteuil) é o bem-sucedido apresentador de um programa sobre
livros na TV. Sua mulher, Anne
(Juliette Binoche), é funcionária
graduada de uma editora. Estamos, então, diante de um belo casal com um filho adolescente,
Pierrot.
A segunda história, talvez a
mais relevante, diz respeito às
imagens, sua origem e seu destino. Pois a trama gira em torno das
aterrorizantes fitas de vídeo que
Georges começa a receber: sua vida é vigiada. E o mais inquietante
nelas é que nada, à primeira vista,
distingue tais imagens das "normais" -as em que o cineasta filma a história propriamente dita.
Com isso, o austríaco Michael
Haneke lança uma sombra: não
sabemos se o que vemos são imagens "normais" (dentro da norma) ou parasitárias.
Quem achar que isso parece história de David Cronenberg ("Spider - Desafie Sua Mente", "Marcas da Violência") está com a razão: em um nível, parece mesmo,
pois se trata, aqui, de falar de um
mundo em que a imagem está em
toda parte e nunca controlamos
sua produção. No elevador, na
portaria dos prédios, nos bancos,
somos filmados. Isso é "para nosso próprio bem", nos garantem.
Mas quem estabelece o que é
"nosso próprio bem"?
Não deixa de ser irônico que
Georges trabalhe na televisão (ele,
que invade as casas com sua imagem, agora é invadido) e que a terceira história gire em torno de
uma vingança. Ela tem dupla face:
familiar e política.
No passado remoto de Georges
existe algo oculto com o que ele
não gosta de lidar: a lembrança de
Majid. Ele é um órfão que Georges, por ciúmes, não permitiu que
crescesse com ele: armou para
que fosse remetido a um orfanato.
É esse fantasma que ressurge em
sua vida, assustador. Ressurge como a velha história da independência da Argélia: um desses recalques com que a França tem
tanta dificuldade em lidar.
Moderno
Para articular esses vários níveis
ficcionais, Haneke serve-se de
uma retórica moderna, do plano
longo aos travellings ousados.
Mais do que isso, coloca questões
características do cinema moderno (a que versa sobre a verdade da
imagem, por exemplo).
No entanto, algo gira em falso
nesse maquinário. O moderno
tende a nos colocar em liberdade
diante da imagem, e isso Haneke
de certa forma nos interdita.
Quando lembra tão ostensivamente da falsidade possível das
imagens, é nosso olhar -mais do
que a produção da imagem- que
é colocado em dúvida.
Da mesma forma, esse aparato
de liberdade não o impede de
conduzir a trama politicamente
para lados um tanto sombrios.
Por que Majid nos é apresentado como um homem dissimulado, que se faz acompanhar por
um filho idem? Ainda que o filme
dê boas razões para Majid ter esse
comportamento, ele nos coloca
diante de um dilema: para além
das culpas reais que o branco pode ter em relação ao árabe (e demais), será possível e interessante
manter uma convivência saudável entre esses povos?
O outro é uma sombra pesada
para Haneke, o que talvez explique a proposta dupla de seu filme.
Aos iguais, europeus, ele professa
a liberdade do moderno, como
um Rossellini redivivo. Aos demais, reserva esse quê estranhamente opressivo que caracteriza
seu cinema. Um cinema de dupla
face, no mínimo.
Caché
Direção: Michael Haneke
Produção: França/Áustria/Alemanha/
Itália, 2005
Com: Daniel Auteuil, Juliette Binoche e
Maurice Bénichou
Quando: a partir de hoje nos cines Frei
Caneca Unibanco Arteplex, Bombril,
Pátio Higienópolis, Kinoplex Itaim,
Reserva Cultural, Cinesesc, Bristol e
circuito
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