São Paulo, sexta-feira, 05 de maio de 2006

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CRÍTICA/"CACHÉ"

Filme utiliza recursos sedutores do cinema moderno, mas reserva uma face estranhamente opressiva

Michael Haneke discute overdose de imagens

INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA

Há mais de uma história escondida em "Caché". Na mais evidente, Georges (Daniel Auteuil) é o bem-sucedido apresentador de um programa sobre livros na TV. Sua mulher, Anne (Juliette Binoche), é funcionária graduada de uma editora. Estamos, então, diante de um belo casal com um filho adolescente, Pierrot.
A segunda história, talvez a mais relevante, diz respeito às imagens, sua origem e seu destino. Pois a trama gira em torno das aterrorizantes fitas de vídeo que Georges começa a receber: sua vida é vigiada. E o mais inquietante nelas é que nada, à primeira vista, distingue tais imagens das "normais" -as em que o cineasta filma a história propriamente dita.
Com isso, o austríaco Michael Haneke lança uma sombra: não sabemos se o que vemos são imagens "normais" (dentro da norma) ou parasitárias.
Quem achar que isso parece história de David Cronenberg ("Spider - Desafie Sua Mente", "Marcas da Violência") está com a razão: em um nível, parece mesmo, pois se trata, aqui, de falar de um mundo em que a imagem está em toda parte e nunca controlamos sua produção. No elevador, na portaria dos prédios, nos bancos, somos filmados. Isso é "para nosso próprio bem", nos garantem. Mas quem estabelece o que é "nosso próprio bem"?
Não deixa de ser irônico que Georges trabalhe na televisão (ele, que invade as casas com sua imagem, agora é invadido) e que a terceira história gire em torno de uma vingança. Ela tem dupla face: familiar e política.
No passado remoto de Georges existe algo oculto com o que ele não gosta de lidar: a lembrança de Majid. Ele é um órfão que Georges, por ciúmes, não permitiu que crescesse com ele: armou para que fosse remetido a um orfanato. É esse fantasma que ressurge em sua vida, assustador. Ressurge como a velha história da independência da Argélia: um desses recalques com que a França tem tanta dificuldade em lidar.

Moderno
Para articular esses vários níveis ficcionais, Haneke serve-se de uma retórica moderna, do plano longo aos travellings ousados. Mais do que isso, coloca questões características do cinema moderno (a que versa sobre a verdade da imagem, por exemplo).
No entanto, algo gira em falso nesse maquinário. O moderno tende a nos colocar em liberdade diante da imagem, e isso Haneke de certa forma nos interdita. Quando lembra tão ostensivamente da falsidade possível das imagens, é nosso olhar -mais do que a produção da imagem- que é colocado em dúvida.
Da mesma forma, esse aparato de liberdade não o impede de conduzir a trama politicamente para lados um tanto sombrios.
Por que Majid nos é apresentado como um homem dissimulado, que se faz acompanhar por um filho idem? Ainda que o filme dê boas razões para Majid ter esse comportamento, ele nos coloca diante de um dilema: para além das culpas reais que o branco pode ter em relação ao árabe (e demais), será possível e interessante manter uma convivência saudável entre esses povos?
O outro é uma sombra pesada para Haneke, o que talvez explique a proposta dupla de seu filme. Aos iguais, europeus, ele professa a liberdade do moderno, como um Rossellini redivivo. Aos demais, reserva esse quê estranhamente opressivo que caracteriza seu cinema. Um cinema de dupla face, no mínimo.
Caché
   
Direção: Michael Haneke
Produção: França/Áustria/Alemanha/ Itália, 2005 Com: Daniel Auteuil, Juliette Binoche e Maurice Bénichou Quando: a partir de hoje nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex, Bombril, Pátio Higienópolis, Kinoplex Itaim, Reserva Cultural, Cinesesc, Bristol e circuito


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