São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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"O ECLIPSE"

Antonioni traduz mal-estar moderno

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Filmando um eclipse, em Florença, em 1962, Antonioni começava a entender o filme que estava preparando: "Tudo o que consigo pensar é que, durante o eclipse, provavelmente até os sentimentos ficarão parados".
O filme, lançado com extras parcos, mas pontuais (a exemplo dessas "palavras do diretor"), acabou se chamando "O Eclipse". Uma obra fundada sobre uma elipse: após uma noite de discussão e procura, de esgotamento, temos aqui um casal totalmente vazio (de palavras e sentimentos), imerso na zona nebulosa que é o inferno de toda relação, a incerteza ou a insuficiência do amor.
Espaços vazios de acontecimentos, casais vazios de sentimentos, habitados por esse vazio: Antonioni encerra sua chamada "Trilogia da Incomunicabilidade" mais ciente de estar lidando com os sintomas de um mal-estar da civilização. O que "O Eclipse" reafirma é que a enfermidade de Eros, o cansaço do amor, é uma doença própria da sociedade moderna. Seria preciso traduzir, portanto, de forma diversa o diálogo entre Vittoria (Monica Vitti) e sua vizinha africanista. O que quer dizer à vizinha não é que na Europa, ao contrário da África, "tudo é muito trabalhoso, inclusive o amor", como foi traduzido aqui. O que diz é: "Aqui, há um grande cansaço, inclusive no amor".
A pequena comédia de seu velho namoro Vittoria troca pelo teatro grandiloqüente do jovem corretor ambicioso vivido por Alain Delon, mas seu tédio de espectadora continua quase o mesmo. Seu problema é já não conseguir estar no mundo senão como uma espectadora, mal que afeta, de resto, quase todas as heroínas (a Vitti de Antonioni, a Ingrid Bergman de Rossellini, a Anna Karina de Godard) do dito cinema moderno europeu. O vínculo entre o ser e o mundo se rompeu. E o vínculo entre as pessoas se fez mais frágil e inapreensível.
"Gostaria de não amá-lo ou amá-lo muito melhor", diz Vittoria ao personagem de Delon. É o mais próximo que Antonioni chega dos versos de Dylan Thomas que pretendia pôr nos créditos iniciais: "Alguma certeza deve porém existir, se não a de amar bem, ao menos a de não amar".
Delon, que só se deixa envolver depois de um momento de baixa e frustração na Bolsa de Valores, representa o homem moderno em sua vacuidade de espírito. Vittoria, a mulher moderna em seu infantilismo. Não é que Antonioni despreze a modernidade. A cada filme, é como se a modernidade e seus signos fizessem o cineasta reencontrar e voltar a perder de vista as suas questões pessoais.
O Antonioni do final de "O Eclipse", perdido entre os hiatos arquitetônicos da cidade, nos faz lembrar o personagem de um milionário que, tendo acabado de perder uma fortuna, sai para espairecer, sentando-se para esboçar, num guardanapo, o desenho de um jarro de flores.


O Eclipse
    
Direção: Michelangelo Antonioni
Distribuidora: Versátil; R$ 45, em média


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