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GASTRONOMIA
Sexo, mentiras e videoteipe
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Resolvi. Só há um assunto
que agrada a todo mundo.
Sexo. E é sobre sexo que vou escrever até que todos, todos os leitores que me liam na sexta-feira
voltem ao ninho, aqui neste meio
da quinta. Todos. Queria ser como a Adélia Prado, a poeta que
tem um velho caso ardente e escandaloso com Deus. Escreve
sempre sob uma forte tensão erótica e, no poema "Casamento",
ela, a poeta apaixonada, zomba
das mulheres que se negam a limpar os peixes que os homens pescam. Ela sabe das coisas, não é boba.
Para isto se levanta a qualquer
hora da noite e ajuda o marido.
Lidam com facas, escamam, evisceram, enquanto ele se lembra
dos meneios, da prata, da beleza
viva do peixe. As correntes de sensações vão atravessando a cozinha e amarrando o casal. "Por fim
os peixes na travessa/vamos dormir/coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva." Com poeta
é assim, limpam peixe e espocam
coisas prateadas na cama; é bom,
mas com cozinheiro, principalmente profissional, é quase sempre diferente.
A maioria, depois que limpa
uma tonelada de camarões, precisa sair depressa, tomar banho de
chuveiro, de caco de telha, lavar a
cabeça, esfregar o corpo com bucha nova, sabão cheiroso, e morrem por uma cama de lençóis
frescos, sem fogos de artifício, só o
sono.
É que o trabalho e o amor de repente se colocam em departamentos diferentes. Pode e sempre
vai haver um inesperado toque de
dedos, a surpresa de umas mãos
dando choque sobre as couves, o
cheiro cru de um saco de batatas,
mas o mais comum é o calor, a irritação, o brilho perigoso da faca
afiada, o cansaço e o ranger de
dentes, um debulhar de choro seco sem lágrimas, as pragas sotto-voce, as escuras manchas de sangue no avental.
Por isso odeio os antigos livros
franceses de comida, que obrigatoriamente juntavam sexo e comida, um vício literário francês,
um vício de estilo. Não os livros de
verdade, os de cozinheiros, mas
os teóricos, que são sempre pegajosos, óbvios.
E me irritam também os filmes,
estes que existem até hoje, onde
os homens enfiam morangos nas
orelhas das mulheres, tomam
champanhe dentro de sapatos,
lambuzam-lhes os peitos de mel,
que coisa mais fora de moda, o
cozinheiro geralmente não é de
desperdícios, logo inventaria uma
boa receita de morango caramelado que enfiaria (of all places) na
boca da amada, e ela mastigaria,
engoliria, e o prazer estaria aí, no
próprio comer.
Poderia me divertir com essa
dose constante de sacanagem embutida nesses livros e filmes, mas
me desagrada, não consigo achar
graça. Tiro exemplos dessas pérolas sensuais, ao deus-dará, de um
autor de muitos livros, famoso na
década de 60, Robert Morel.
Já começa ensinando a conquistar o parceiro na arrumação da
mesa: "As velas são evidentemente fálicas". Durante a refeição: "Fixar o olhar nos nabos ou nas cenouras... brincar com elas no prato...". Em caso de desânimo. "Para se estimular o desejo, prepara-se uma bela omeleta, mal passada,
que ainda bem quente se aplica
sobre as nádegas nuas do companheiro mais reticente. Em seguida, os dois deverão comer a omeleta em conjunto, rindo e acariciando-se mutuamente."
Arre, va-t-en Satan, bode velho
concupiscente e tarado! Já pensaram a cara de fauno, de incubo, de
súcubo, só um pé no saco resolve
um caso desses.
Assistiram "Tampopo", o filme
de comida por excelência? Tem
uns sketches, umas notas de pé de
página que são o que há de mais
interessante no filme. Esses comentários soltos, separados da
história linear da cozinheira Tampopo mostram com a maior delicadeza como pode ser erótica a
comida.
Sem muitas insinuações, e com
a tela iluminada como um cenário
pop, o diretor faz temperar uma
mulher deliciosa com sal, limão e
creme e inventa o beijo mais sensual do cinema, uma gema de ovo
passando de uma boca para a outra sem se quebrar, até que se quebra. E tem o homem e a meninota
pescadora de ostras... e a beleza
do corpo do gângster em estertores de morte de animal caçado...
Bom, é melhor parar, porque
por escrito corro o risco de me assemelhar ao sedutor acima mencionado, com sua omeleta. Mas
peguem o filme em vídeo e percebam a graça e delicadeza das cenas eróticas, o humor, o cômico
mesmo. É bonito. E os créditos do
filme são rolados sobre uma
criança sugando e sugando o peito da mãe, com prazer nunca saciado, talvez o começo dessa história toda.
Antes de escrever este texto pedi
a um amigo sugestões sobre coisas gostosas na cozinha. Logo, me
acudiu: fundo de panela de angu
queimado, cheiro de pão assando,
de alho e couve refogados, rapa de
doce, bacon frito, colherada de
feijão roubada da panela, casquinha de carne assada, pão molhado na gordura da assadeira, lasca
de bacalhau cru beliscado, cansaço bom de trabalho manual.
Também! Também!
E-mail: ninahort@uol.com.br
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