São Paulo, quinta-feira, 05 de julho de 2001

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GASTRONOMIA

Sexo, mentiras e videoteipe

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Resolvi. Só há um assunto que agrada a todo mundo. Sexo. E é sobre sexo que vou escrever até que todos, todos os leitores que me liam na sexta-feira voltem ao ninho, aqui neste meio da quinta. Todos. Queria ser como a Adélia Prado, a poeta que tem um velho caso ardente e escandaloso com Deus. Escreve sempre sob uma forte tensão erótica e, no poema "Casamento", ela, a poeta apaixonada, zomba das mulheres que se negam a limpar os peixes que os homens pescam. Ela sabe das coisas, não é boba.
Para isto se levanta a qualquer hora da noite e ajuda o marido. Lidam com facas, escamam, evisceram, enquanto ele se lembra dos meneios, da prata, da beleza viva do peixe. As correntes de sensações vão atravessando a cozinha e amarrando o casal. "Por fim os peixes na travessa/vamos dormir/coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva." Com poeta é assim, limpam peixe e espocam coisas prateadas na cama; é bom, mas com cozinheiro, principalmente profissional, é quase sempre diferente.
A maioria, depois que limpa uma tonelada de camarões, precisa sair depressa, tomar banho de chuveiro, de caco de telha, lavar a cabeça, esfregar o corpo com bucha nova, sabão cheiroso, e morrem por uma cama de lençóis frescos, sem fogos de artifício, só o sono.
É que o trabalho e o amor de repente se colocam em departamentos diferentes. Pode e sempre vai haver um inesperado toque de dedos, a surpresa de umas mãos dando choque sobre as couves, o cheiro cru de um saco de batatas, mas o mais comum é o calor, a irritação, o brilho perigoso da faca afiada, o cansaço e o ranger de dentes, um debulhar de choro seco sem lágrimas, as pragas sotto-voce, as escuras manchas de sangue no avental.
Por isso odeio os antigos livros franceses de comida, que obrigatoriamente juntavam sexo e comida, um vício literário francês, um vício de estilo. Não os livros de verdade, os de cozinheiros, mas os teóricos, que são sempre pegajosos, óbvios.
E me irritam também os filmes, estes que existem até hoje, onde os homens enfiam morangos nas orelhas das mulheres, tomam champanhe dentro de sapatos, lambuzam-lhes os peitos de mel, que coisa mais fora de moda, o cozinheiro geralmente não é de desperdícios, logo inventaria uma boa receita de morango caramelado que enfiaria (of all places) na boca da amada, e ela mastigaria, engoliria, e o prazer estaria aí, no próprio comer.
Poderia me divertir com essa dose constante de sacanagem embutida nesses livros e filmes, mas me desagrada, não consigo achar graça. Tiro exemplos dessas pérolas sensuais, ao deus-dará, de um autor de muitos livros, famoso na década de 60, Robert Morel.
Já começa ensinando a conquistar o parceiro na arrumação da mesa: "As velas são evidentemente fálicas". Durante a refeição: "Fixar o olhar nos nabos ou nas cenouras... brincar com elas no prato...". Em caso de desânimo. "Para se estimular o desejo, prepara-se uma bela omeleta, mal passada, que ainda bem quente se aplica sobre as nádegas nuas do companheiro mais reticente. Em seguida, os dois deverão comer a omeleta em conjunto, rindo e acariciando-se mutuamente."
Arre, va-t-en Satan, bode velho concupiscente e tarado! Já pensaram a cara de fauno, de incubo, de súcubo, só um pé no saco resolve um caso desses.
Assistiram "Tampopo", o filme de comida por excelência? Tem uns sketches, umas notas de pé de página que são o que há de mais interessante no filme. Esses comentários soltos, separados da história linear da cozinheira Tampopo mostram com a maior delicadeza como pode ser erótica a comida.
Sem muitas insinuações, e com a tela iluminada como um cenário pop, o diretor faz temperar uma mulher deliciosa com sal, limão e creme e inventa o beijo mais sensual do cinema, uma gema de ovo passando de uma boca para a outra sem se quebrar, até que se quebra. E tem o homem e a meninota pescadora de ostras... e a beleza do corpo do gângster em estertores de morte de animal caçado...
Bom, é melhor parar, porque por escrito corro o risco de me assemelhar ao sedutor acima mencionado, com sua omeleta. Mas peguem o filme em vídeo e percebam a graça e delicadeza das cenas eróticas, o humor, o cômico mesmo. É bonito. E os créditos do filme são rolados sobre uma criança sugando e sugando o peito da mãe, com prazer nunca saciado, talvez o começo dessa história toda.
Antes de escrever este texto pedi a um amigo sugestões sobre coisas gostosas na cozinha. Logo, me acudiu: fundo de panela de angu queimado, cheiro de pão assando, de alho e couve refogados, rapa de doce, bacon frito, colherada de feijão roubada da panela, casquinha de carne assada, pão molhado na gordura da assadeira, lasca de bacalhau cru beliscado, cansaço bom de trabalho manual.
Também! Também!
E-mail: ninahort@uol.com.br


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