São Paulo, sexta-feira, 05 de julho de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O reino de Deus pelos cavalos de Itaipava

Rouxinol , Paquetá, Chouriço, Aymoré, Lampião, Pombinho, Botafogo, Beija-Flor, Sultão, Pampa, Tamoio, Portugal, Mustafá, Cacique, Oberdan... O tempo passou, esqueci compromissos, deveres, parentes e amigos, esqueci até mesmo mulheres que não deveria esquecer, mas esses nomes ainda me frequentam, cobertos de poeira, é certo, mas basta uma espanadela e eles ressurgem com suas cores, seus cheiros e manias.
Eram os nomes dos cavalos de nossa fazenda, em Itaipava, onde passávamos as férias de julho e -delícia das delícias- as de janeiro e fevereiro de todos os anos.
A fazenda ficava a légua e meia da estrada União-Indústria, que liga Petrópolis a Juiz de Fora. E os cavalos, além de duas ou três charretes e de um imenso carro de boi, eram o único transporte que nos ligava à civilização, ao diabo, ao mundo e à carne a que nós havíamos renunciado, alguns definitivamente, outros provisoriamente, como a maioria, eu inclusive.
O carro de boi era puxado por dois deles, Marcante e Navegante, e, nos dez anos em que lá estive, jamais consegui distinguir um do outro. O carro levava nossas bagagens e um ou outro aluno que não podia vencer a pé ou a cavalo a légua e meia que nos separava do asfalto. Nunca andei nele -um dos poucos motivos de orgulho que conservei durante os dez anos. Ser transportado pela dupla Marcante e Navegante era selo de ignomínia que se grudava na testa para sempre; nem mesmo o Facuri, que falava latim como Cícero e fazia poemas como Horácio, era levado a sério porque se tornara freguês habitual do carro de boi.
Eu pertencia à classe média. Nunca tive direito a ser guardião de um dos cavalos, honra que era exclusiva do altíssimo clero do seminário, de alguns padres e de alunos que, por isso ou aquilo, eram considerados vestais, varões de Plutarco. Tomar conta do Pombinho, por exemplo, um cavalo todo branco, sedoso, de olhos avermelhados, era privilégio mais disputado do que a ida a Roma para fazer filosofia na Gregoriana.
Em compensação, tomar conta do Lampião, um cavalo preto e selvagem, era uma temeridade tão grande que ele ficou sem dono durante muito tempo, até que o padre Castro Pinto, um gaúcho de poucas palavras, mas de grande energia, tentou amansá-lo e foram os dois, padre e cavalo, parar no açude que movimentava o dínamo que nos iluminava à noite. Foi uma epopéia salvar os dois. Lampião ficou atolado numa poça de lama, padre Castro Pinto salvou-o, mas engoliu tanta lama que teve de descer a Petrópolis para fazer uma lavagem no estômago.
Eu precisaria ter o gênio, a paciência e a isenção de Tucídides para narrar aquela façanha, que em nossos anais ficou equivalendo à Guerra do Peloponeso, uma hégira, um nascimento de Cristo, duas eras históricas, a antes e a depois do Lampião. A morte do cardeal Leme, em 1942, foi um fato notável AL, antes de Lampião. E a nomeação de d. Motinha para bispo de Campanha foi um dos eventos DL, depois de Lampião. Eu mesmo, que operei as amígdalas naquele período, até hoje não me lembro se isso foi um passo importante de minha biografia antes ou depois de Lampião.
Mas voltemos aos cavalos, todos os reinos do mundo por um deles. Meu primo Aylton tinha o privilégio de tomar conta do Cacique, que pertencia ao alto clero cavalar, só superado pelo citado Pombinho e por Rouxinol, cujo dono era o padre Cipriano, que fazia uma política nefasta na hora de escolher quem iria passear no bonito alazão, um pouco gordo, mas valente e manso ao mesmo tempo, e que era disputadíssimo, principalmente quando Alceu Amoroso Lima, que havia entrado para a Academia naquele tempo, passou uns dias conosco, dando um curso sobre Maritain, e teve o privilégio de usar Rouxinol com exclusividade.
Um filho de Rouxinol, nascido logo depois, não tomou o nome do grande pensador católico, mas ficou com o seu pseudônimo famoso: Tristão de Athayde. Dei algumas voltas nele, mas era muito alto e não o dominava inteiramente.
Meu preferido era Aymoré, com ""y" mesmo, que era baixinho, tinha uma cor indefinível, era dócil por temperamento e faixa etária. Dei-me bem com ele, não o escolhi, ele é que me escolheu. Na hierarquia dos párias, somente Chouriço ficava abaixo dele, ninguém brigava por sair no Aymoré. Um dia, eu me resignei, levei-o até o vale da Boa Esperança, não o forcei muito e ganhei sua gratidão.
Lembro-me bem dele. Era feio, tinha um cheiro esquisito, dois olhos tristes que me olhavam com ternura -a ternura que eu lhe devolvia, pois ele me guiava, adivinhava minhas possibilidades, escolhia as melhores trilhas, não era como Paquetá, que jogou o Zé Grande numa vala e ainda caiu por cima. Zé Grande teve de operar a bacia, teve de fazer um enxerto, meses depois Paquetá apareceu de barriga estufada para cima, alguém o envenenara, Zé Grande quase foi expulso, mas provou sua inocência -da qual nem todos ficaram convencidos.
Botafogo, um tordilho elegante, também era do padre Cipriano. Quebrou uma pata e teve de ser sacrificado. Padre Cipriano chorou pelos cantos e, sete dias depois, celebrou clandestinamente uma missa de 7º dia pela alma de seu amigo. Eu o ajudei nessa missa sacrílega.



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