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CARLOS HEITOR CONY
O reino de Deus pelos cavalos de Itaipava
Rouxinol , Paquetá, Chouriço, Aymoré, Lampião,
Pombinho, Botafogo, Beija-Flor,
Sultão, Pampa, Tamoio, Portugal, Mustafá, Cacique, Oberdan...
O tempo passou, esqueci compromissos, deveres, parentes e amigos, esqueci até mesmo mulheres
que não deveria esquecer, mas esses nomes ainda me frequentam,
cobertos de poeira, é certo, mas
basta uma espanadela e eles ressurgem com suas cores, seus cheiros e manias.
Eram os nomes dos cavalos de
nossa fazenda, em Itaipava, onde
passávamos as férias de julho e
-delícia das delícias- as de janeiro e fevereiro de todos os anos.
A fazenda ficava a légua e meia
da estrada União-Indústria, que
liga Petrópolis a Juiz de Fora. E os
cavalos, além de duas ou três
charretes e de um imenso carro de
boi, eram o único transporte que
nos ligava à civilização, ao diabo,
ao mundo e à carne a que nós havíamos renunciado, alguns definitivamente, outros provisoriamente, como a maioria, eu inclusive.
O carro de boi era puxado por
dois deles, Marcante e Navegante,
e, nos dez anos em que lá estive,
jamais consegui distinguir um do
outro. O carro levava nossas bagagens e um ou outro aluno que
não podia vencer a pé ou a cavalo
a légua e meia que nos separava
do asfalto. Nunca andei nele
-um dos poucos motivos de orgulho que conservei durante os
dez anos. Ser transportado pela
dupla Marcante e Navegante era
selo de ignomínia que se grudava
na testa para sempre; nem mesmo o Facuri, que falava latim como Cícero e fazia poemas como
Horácio, era levado a sério porque se tornara freguês habitual
do carro de boi.
Eu pertencia à classe média.
Nunca tive direito a ser guardião
de um dos cavalos, honra que era
exclusiva do altíssimo clero do seminário, de alguns padres e de
alunos que, por isso ou aquilo,
eram considerados vestais, varões
de Plutarco. Tomar conta do
Pombinho, por exemplo, um cavalo todo branco, sedoso, de olhos
avermelhados, era privilégio mais
disputado do que a ida a Roma
para fazer filosofia na Gregoriana.
Em compensação, tomar conta
do Lampião, um cavalo preto e
selvagem, era uma temeridade
tão grande que ele ficou sem dono
durante muito tempo, até que o
padre Castro Pinto, um gaúcho
de poucas palavras, mas de grande energia, tentou amansá-lo e
foram os dois, padre e cavalo, parar no açude que movimentava o
dínamo que nos iluminava à noite. Foi uma epopéia salvar os dois.
Lampião ficou atolado numa poça de lama, padre Castro Pinto
salvou-o, mas engoliu tanta lama
que teve de descer a Petrópolis para fazer uma lavagem no estômago.
Eu precisaria ter o gênio, a paciência e a isenção de Tucídides
para narrar aquela façanha, que
em nossos anais ficou equivalendo à Guerra do Peloponeso, uma
hégira, um nascimento de Cristo,
duas eras históricas, a antes e a
depois do Lampião. A morte do
cardeal Leme, em 1942, foi um fato notável AL, antes de Lampião.
E a nomeação de d. Motinha para
bispo de Campanha foi um dos
eventos DL, depois de Lampião.
Eu mesmo, que operei as amígdalas naquele período, até hoje não
me lembro se isso foi um passo
importante de minha biografia
antes ou depois de Lampião.
Mas voltemos aos cavalos, todos
os reinos do mundo por um deles.
Meu primo Aylton tinha o privilégio de tomar conta do Cacique,
que pertencia ao alto clero cavalar, só superado pelo citado Pombinho e por Rouxinol, cujo dono
era o padre Cipriano, que fazia
uma política nefasta na hora de
escolher quem iria passear no bonito alazão, um pouco gordo, mas
valente e manso ao mesmo tempo, e que era disputadíssimo,
principalmente quando Alceu
Amoroso Lima, que havia entrado para a Academia naquele
tempo, passou uns dias conosco,
dando um curso sobre Maritain, e
teve o privilégio de usar Rouxinol
com exclusividade.
Um filho de Rouxinol, nascido
logo depois, não tomou o nome
do grande pensador católico, mas
ficou com o seu pseudônimo famoso: Tristão de Athayde. Dei algumas voltas nele, mas era muito
alto e não o dominava inteiramente.
Meu preferido era Aymoré, com
""y" mesmo, que era baixinho, tinha uma cor indefinível, era dócil
por temperamento e faixa etária.
Dei-me bem com ele, não o escolhi, ele é que me escolheu. Na hierarquia dos párias, somente
Chouriço ficava abaixo dele, ninguém brigava por sair no Aymoré. Um dia, eu me resignei, levei-o
até o vale da Boa Esperança, não
o forcei muito e ganhei sua gratidão.
Lembro-me bem dele. Era feio,
tinha um cheiro esquisito, dois
olhos tristes que me olhavam com
ternura -a ternura que eu lhe
devolvia, pois ele me guiava, adivinhava minhas possibilidades,
escolhia as melhores trilhas, não
era como Paquetá, que jogou o Zé
Grande numa vala e ainda caiu
por cima. Zé Grande teve de operar a bacia, teve de fazer um enxerto, meses depois Paquetá apareceu de barriga estufada para cima, alguém o envenenara, Zé
Grande quase foi expulso, mas
provou sua inocência -da qual
nem todos ficaram convencidos.
Botafogo, um tordilho elegante,
também era do padre Cipriano.
Quebrou uma pata e teve de ser
sacrificado. Padre Cipriano chorou pelos cantos e, sete dias depois, celebrou clandestinamente uma missa de 7º dia pela alma de seu amigo. Eu o ajudei nessa missa sacrílega.
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