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Crítica/"Acenos e Afagos"
Novo romance de Noll põe em confronto libido e moral
Livro do autor gaúcho, que está na 6ª Flip, é odisséia sexual de um senhor burguês
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O gaúcho João Gilberto
Noll, cuja obra em parte é reeditada por sua
nova casa editorial, resumiu o
entrecho geral de seus livros
como "a história de um homem
sem qualidades".
Nestes termos, seu último livro, "Acenos e Afagos" (um excelente romance com título
ruim), pode ser definido como a
história ou odisséia sexual deste ser supostamente privado de
virtudes. Não que faltem qualidades, no sentido de predicados, ao personagem; nem qualidades, na acepção de méritos, a
suas peripécias.
Pela crueza com que trata
desde o início a questão sexual,
o texto nos faz pensar nas narrativas de Jean Genet, como
"Nossa Senhora das Flores".
Ou, em virtude da mudança de
sexo por que passa o protagonista no meio da história, nos
sugere o romance "Orlando",
de Virginia Woolf.
Mas é justamente na diferença que há entre o livro de Noll e
os dos autores europeus que se
percebe sua singularidade criativa. Os personagens de Genet,
por exemplo, são indivíduos
que vivem à margem da sociedade, bandidos, assassinos,
prostitutas, enquanto o herói
de Noll é um senhor burguês,
casado, com um filho jovem e
que vive mal-e-mal de uma herança familiar.
Assim, ele é obrigado a relegar seus impulsos sexuais (que,
por serem de natureza sobretudo homossexual em princípio
se identificam com a transgressão dos valores estabelecidos)
ao espaço do interdito: zonas
escuras, longos corredores, banheiros deletérios e até mesmo
um decrépito submarino alemão -sucata da Segunda Guerra- que singra os "intestinos
dos mares".
E, quando se efetiva, o ato sexual muitas vezes é perturbado
pela interferência de um punhado de corpos imaginários,
figuras impalpáveis que o herói
insere entre ele e o amado ou
amada, e que impedem o cabal
desfrute do corpo concreto.
O espaço mental, fraudado
por anseios ilusórios, aparta-se
assim do espaço corporal, que
urge pela satisfação imediata.
Verifica-se o velho dilema da
culpa mediante o qual as pulsões sexuais devem manter-se
distantes das pulsões afetivas.
Ou, segundo Freud: "Quando
amam, não desejam, e quando
desejam, não podem amar".
Pois há, no livro, outro tipo
de cisão na constante tensão
entre a libido amorosa e a moral judaico-cristã, que baniu o
sexo para o terreno subterrâneo. Por isso, o protagonista só
é capaz de desfrutar o verdadeiro amor após a morte (sim, ele
morre e ressuscita; ou tudo não
passa de um delírio, conforme
se queira interpretar o enredo).
Mesmo assim, seu idílio
ocorre bem longe de sua Porto
Alegre natal e dentro dos moldes patriarcais: ele assume a
posição de dona-de-casa para o
marido que sai para trabalhar.
A mudança, principalmente em
um primeiro momento, parece
menos de sexo do que de papel
sexual, menos de essência do
que de representação.
Em certo momento o protagonista compara a Bíblia à roupa do amante que se desnuda:
ambos serviriam para "realimentar nossa fome infinita".
Noll insinua a questão: como
conjugar a fome irrestrita da libido, cuja origem é arcaica e intrínseca ao ser humano, com a
fome espiritual, que dentro da
sociedade burguesa regula-se
por códigos baseados na autoridade paterna?
Seu livro é o questionamento
poético dessa impossibilidade.
Ou seja, ali não se conjuga.
Donde os tais "acenos e afagos"
(vá lá) -tímidas, canhestras
tentativas de alcançar o outro
num mundo de indivíduos ensimesmados e de representações desgastadas, que frustram
o pleno gozo da existência.
ACENOS E AFAGOS
Autor: João Gilberto Noll
Editora: Record
Quanto: R$ 32 (206 págs.)
Avaliação: ótimo
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