São Paulo, sábado, 05 de julho de 2008

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Crítica/"Acenos e Afagos"

Novo romance de Noll põe em confronto libido e moral

Livro do autor gaúcho, que está na 6ª Flip, é odisséia sexual de um senhor burguês

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O gaúcho João Gilberto Noll, cuja obra em parte é reeditada por sua nova casa editorial, resumiu o entrecho geral de seus livros como "a história de um homem sem qualidades".
Nestes termos, seu último livro, "Acenos e Afagos" (um excelente romance com título ruim), pode ser definido como a história ou odisséia sexual deste ser supostamente privado de virtudes. Não que faltem qualidades, no sentido de predicados, ao personagem; nem qualidades, na acepção de méritos, a suas peripécias.
Pela crueza com que trata desde o início a questão sexual, o texto nos faz pensar nas narrativas de Jean Genet, como "Nossa Senhora das Flores".
Ou, em virtude da mudança de sexo por que passa o protagonista no meio da história, nos sugere o romance "Orlando", de Virginia Woolf.
Mas é justamente na diferença que há entre o livro de Noll e os dos autores europeus que se percebe sua singularidade criativa. Os personagens de Genet, por exemplo, são indivíduos que vivem à margem da sociedade, bandidos, assassinos, prostitutas, enquanto o herói de Noll é um senhor burguês, casado, com um filho jovem e que vive mal-e-mal de uma herança familiar.
Assim, ele é obrigado a relegar seus impulsos sexuais (que, por serem de natureza sobretudo homossexual em princípio se identificam com a transgressão dos valores estabelecidos) ao espaço do interdito: zonas escuras, longos corredores, banheiros deletérios e até mesmo um decrépito submarino alemão -sucata da Segunda Guerra- que singra os "intestinos dos mares".
E, quando se efetiva, o ato sexual muitas vezes é perturbado pela interferência de um punhado de corpos imaginários, figuras impalpáveis que o herói insere entre ele e o amado ou amada, e que impedem o cabal desfrute do corpo concreto.
O espaço mental, fraudado por anseios ilusórios, aparta-se assim do espaço corporal, que urge pela satisfação imediata. Verifica-se o velho dilema da culpa mediante o qual as pulsões sexuais devem manter-se distantes das pulsões afetivas.
Ou, segundo Freud: "Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar". Pois há, no livro, outro tipo de cisão na constante tensão entre a libido amorosa e a moral judaico-cristã, que baniu o sexo para o terreno subterrâneo. Por isso, o protagonista só é capaz de desfrutar o verdadeiro amor após a morte (sim, ele morre e ressuscita; ou tudo não passa de um delírio, conforme se queira interpretar o enredo).
Mesmo assim, seu idílio ocorre bem longe de sua Porto Alegre natal e dentro dos moldes patriarcais: ele assume a posição de dona-de-casa para o marido que sai para trabalhar. A mudança, principalmente em um primeiro momento, parece menos de sexo do que de papel sexual, menos de essência do que de representação.
Em certo momento o protagonista compara a Bíblia à roupa do amante que se desnuda: ambos serviriam para "realimentar nossa fome infinita". Noll insinua a questão: como conjugar a fome irrestrita da libido, cuja origem é arcaica e intrínseca ao ser humano, com a fome espiritual, que dentro da sociedade burguesa regula-se por códigos baseados na autoridade paterna?
Seu livro é o questionamento poético dessa impossibilidade. Ou seja, ali não se conjuga. Donde os tais "acenos e afagos" (vá lá) -tímidas, canhestras tentativas de alcançar o outro num mundo de indivíduos ensimesmados e de representações desgastadas, que frustram o pleno gozo da existência.


ACENOS E AFAGOS
Autor:
João Gilberto Noll
Editora: Record
Quanto: R$ 32 (206 págs.)
Avaliação: ótimo


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