São Paulo, segunda-feira, 05 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SHOW/CRÍTICA

Melhor do que o silêncio só João

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Começou com "Lígia" (de Tom Jobim), que "não canta muito". Estranhou a atitude de nove entre dez matérias publicadas sobre ele, ao longo da semana, repisando o bordão de que repete sempre as mesmas coisas. E respondeu com palavras que já valeriam a noite: "As notas são mais velhas que as canções. E são sempre as mesmas". Depois foi mais fundo: "Um homem canta o que canta ao longo da vida. São as suas canções".
E ali estava ele, de terno e gravata, com banquinho e violão, de bem com a música, de bem com a platéia do Tom Brasil, de bem com São Paulo (que só ganhou elogios). Ele e suas canções: "Desafinado", "Chega de Saudade", "Meditação", "Corcovado", "Wave", "Caminhos Cruzados", "Retrato em Branco e Preto" (para ficar só nas de Tom), "Curare", "Izaura", "Pra Machucar Meu Coração", "Aos Pés da Cruz", "Guacyra", "Isto Aqui o Que É?", "Às Três da Manhã" (entre as antigas), "Eclipse" (duas vezes), "Estate" e "Que Reste-t-il de Nos Amours" (das estrangeiras), mais "Doralice", "O Pato", "Bolinha de Papel", "Meu Coração Vagabundo". No total, foram 30 canções. Um patrimônio nacional. E patrimônio íntimo de cada um de nós, na memória e na presença da voz de João Gilberto.
A voz demorou um pouco para aquecer, na sexta-feira. E os microfones? Só foram se acertar, incrivelmente, depois de "Pra Machucar Meu Coração". Não é de estranhar que àquela altura João só tivesse ânimo para mais quatro. Está com 71 anos e já tinha cantado 24 músicas.
O maior prejudicado nem foi o cantor; foi o violão. Um crime, mas o que se vai fazer?
Para compensar os mil e tantos que estavam lá e não tinham como ouvir direito, eis aqui dois segredos.
1) O segredo do dedo indicador da mão direita. Em muitos pontos, João Gilberto salienta o indicador, ao tocar um acorde de quatro notas. O resultado é que a voz interna vem à tona, enriquecendo o som e (mais importante e mais raro) iluminando o encadeamento. 2) O segredo das seqüências independentes. Aqui e ali, a batida sincopada se interrompe, e João começa a tocar acordes blocados, absolutamente regulares, sem nada entre eles, numa sequência que segue seu caminho para além das cadências da melodia, criando uma tensão nova na forma, até que finalmente tudo entra em fase de novo. Em "Doralice", na sexta, foram nada menos do que 18 acordes assim.
São segredos escancarados. "Sempre a mesma coisa."
As harmonias mudaram! Em muitas músicas, João Gilberto profanou sua santidade e trocou os acordes. Não só porque vem baixando o tom, para acomodar a septuagenária voz. Trocou mesmo. E não só em Wilson Batista ou Herivelto Martins, mas... em "Desafinado".
Até a platéia canta bonito com João Gilberto. Aprendeu delicadezas com ele, na hora, e cumpriu seu papel decentemente em "Chega de Saudade" e "Saudosa Maloca". Outra coisa. Ele salvou "Lígia" do desconfortável: não cantou o "Lí-gia, Lí-gia", só tocou os acordes, deixando o nome em silêncio, dentro da música.
Às vezes, tomado pelo ritmo, não segura um balanço nervoso da perna esquerda, para lá e para cá. Não perde o controle do canto, não muda a batida, quando muito estica o pescoço para o lado, acompanhando os agudos da linha. É a perna que tem de conter toda aquela pressão da música, toda a linda energia do samba que ele precisa transformar em outra, particular beleza.
Foi mais para o final da noite, nas últimas canções, que a voz entrou num estágio novo.
Um cansaço que não é fadiga; como um peso, um lastro, de tanta música por trás. Não é alegre, nem triste. Um apego e desapego ao mesmo tempo. Serviu para dar outro relevo, também, aos ocasionais esforços da voz, obrigada a percorrer grandes espaços, que a entoação quase falada não faz imaginar.
"O que é felicidade." Começou com Tom Jobim, acabou com Tom Jobim. Da janela, não se via o Corcovado, nem o Redentor, nem era lindo. Mas isso não tem importância. O que é de fora, para um músico como João Gilberto, não tem mais quase nada a ver com o que é dentro.
Importam as mesmas velhas notas de sempre. E as canções que ele canta ao longo da vida.


Avaliação:     


Texto Anterior: Análise: A perspectiva como fio condutor
Próximo Texto: Drummond, 100: "Sarau" explora as muitas faces do poeta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.