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SHOW/CRÍTICA
Melhor do que o silêncio só João
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Começou com "Lígia" (de
Tom Jobim), que "não canta
muito". Estranhou a atitude de
nove entre dez matérias publicadas sobre ele, ao longo da semana,
repisando o bordão de que repete
sempre as mesmas coisas. E respondeu com palavras que já valeriam a noite: "As notas são mais
velhas que as canções. E são sempre as mesmas". Depois foi mais
fundo: "Um homem canta o que
canta ao longo da vida. São as suas
canções".
E ali estava ele, de terno e gravata, com banquinho e violão, de
bem com a música, de bem com a
platéia do Tom Brasil, de bem
com São Paulo (que só ganhou
elogios). Ele e suas canções: "Desafinado", "Chega de Saudade",
"Meditação", "Corcovado", "Wave", "Caminhos Cruzados", "Retrato em Branco e Preto" (para ficar só nas de Tom), "Curare",
"Izaura", "Pra Machucar Meu
Coração", "Aos Pés da Cruz",
"Guacyra", "Isto Aqui o Que É?",
"Às Três da Manhã" (entre as antigas), "Eclipse" (duas vezes), "Estate" e "Que Reste-t-il de Nos
Amours" (das estrangeiras), mais
"Doralice", "O Pato", "Bolinha de
Papel", "Meu Coração Vagabundo". No total, foram 30 canções.
Um patrimônio nacional. E patrimônio íntimo de cada um de nós,
na memória e na presença da voz
de João Gilberto.
A voz demorou um pouco para
aquecer, na sexta-feira. E os microfones? Só foram se acertar, incrivelmente, depois de "Pra Machucar Meu Coração". Não é de
estranhar que àquela altura João
só tivesse ânimo para mais quatro. Está com 71 anos e já tinha
cantado 24 músicas.
O maior prejudicado nem foi o
cantor; foi o violão. Um crime,
mas o que se vai fazer?
Para compensar os mil e tantos
que estavam lá e não tinham como ouvir direito, eis aqui dois segredos.
1) O segredo do dedo indicador
da mão direita. Em muitos pontos, João Gilberto salienta o indicador, ao tocar um acorde de quatro notas. O resultado é que a voz
interna vem à tona, enriquecendo
o som e (mais importante e mais
raro) iluminando o encadeamento. 2) O segredo das seqüências
independentes. Aqui e ali, a batida sincopada se interrompe, e
João começa a tocar acordes blocados, absolutamente regulares,
sem nada entre eles, numa sequência que segue seu caminho
para além das cadências da melodia, criando uma tensão nova na
forma, até que finalmente tudo
entra em fase de novo. Em "Doralice", na sexta, foram nada menos
do que 18 acordes assim.
São segredos escancarados.
"Sempre a mesma coisa."
As harmonias mudaram! Em
muitas músicas, João Gilberto
profanou sua santidade e trocou
os acordes. Não só porque vem
baixando o tom, para acomodar a
septuagenária voz. Trocou mesmo. E não só em Wilson Batista
ou Herivelto Martins, mas... em
"Desafinado".
Até a platéia canta bonito com
João Gilberto. Aprendeu delicadezas com ele, na hora, e cumpriu
seu papel decentemente em "Chega de Saudade" e "Saudosa Maloca". Outra coisa. Ele salvou "Lígia" do desconfortável: não cantou o "Lí-gia, Lí-gia", só tocou os
acordes, deixando o nome em silêncio, dentro da música.
Às vezes, tomado pelo ritmo,
não segura um balanço nervoso
da perna esquerda, para lá e para
cá. Não perde o controle do canto,
não muda a batida, quando muito
estica o pescoço para o lado,
acompanhando os agudos da linha. É a perna que tem de conter
toda aquela pressão da música,
toda a linda energia do samba que
ele precisa transformar em outra,
particular beleza.
Foi mais para o final da noite,
nas últimas canções, que a voz entrou num estágio novo.
Um cansaço que não é fadiga;
como um peso, um lastro, de tanta música por trás. Não é alegre,
nem triste. Um apego e desapego
ao mesmo tempo. Serviu para dar
outro relevo, também, aos ocasionais esforços da voz, obrigada
a percorrer grandes espaços, que
a entoação quase falada não faz
imaginar.
"O que é felicidade." Começou
com Tom Jobim, acabou com
Tom Jobim. Da janela, não se via
o Corcovado, nem o Redentor,
nem era lindo. Mas isso não tem
importância. O que é de fora, para
um músico como João Gilberto,
não tem mais quase nada a ver
com o que é dentro.
Importam as mesmas velhas
notas de sempre. E as canções que
ele canta ao longo da vida.
Avaliação:
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