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CACILDA!
"É um pacto de crianças', diz Bete Coelho
da Reportagem Local
Bete Coelho revela que seu interesse pelo teatro estava adormecido até a decisão de fazer "Cacilda!"
com José Celso Martinez Corrêa. A
distância deu lugar à identidade.
Ela já maneja com habilidade o
universo de termos do encenador.
Fala como a senhora do teatro
Oficina. Nos ensaios, sua voz não
parece vir da garganta, mas se formar numa caixa mais ampla, como
se a própria sala de espetáculos
criasse sons. Ao falar, ela dirige os
olhos para as mãos em concha, a
procurar palavras num texto que
ali estivesse escrito.
(MARIO VITOR SANTOS)
Folha - Como você se juntou ao
Oficina e a José Celso, de quem parecia tão distante?
Bete Coelho - Logo que escreveu
o texto, o Zé pensou em mim. Trabalhava com o Gerald Thomas na
época, achava muito estranho
atuar com o Zé Celso. Fui fazer TV,
minha vida mudou. Mais recentemente, passamos semanas lendo a
peça. Querendo fazer, mas achando utópico. A impressão é que precisa de uns 30 atores, pelas várias
personagens que tem.
O texto existe como superprodução. Se fosse montado com muito
dinheiro nos EUA, na Broadway,
não teria coisas tão maravilhosas
como as que existem na cabeça do
Zé. Como o sangue do aneurisma
de Cacilda, que passa pelo corredor do teatro, um plástico e uma
água tinta. Só no Oficina essa qualidade de alegria supera a falta de
grana. A impossibilidade de fazer a
peça tem um valor inigualável.
Folha - Você se considera uma
ponte entre Oficina e a Broadway?
Bete - A Cacilda já traz isso, o fato
de ela ser de um teatro mais tradicional. O teatro dela me possibilita
fazer o teatro que eu vivi. Tem momentos na peça em que existe até
um confronto entre a tragicomediorgia e o teatrão.
Folha - Há mais identidade ou
atritos entre você e Zé Celso?
Bete - Uma identidade que, embora não se saiba de onde ou por
que surgiu, é absoluta. Ele é vidente do ator e do ser humano. Nos
apaixonamos pelas coisas em volta, as pessoas. A gente come aquilo
que cerca para vomitar em cena e
tornar a coisa mais viva. Nossos focos são diferentes. Só que tem esse
negócio comum chamado Cacilda.
Folha - O que você quer dizer
com focos diferentes?
Bete - O Zé tem uma necessidade
de caotizar, de destruir para o renascimento. É como se dinamitasse tudo para ver o que realmente é
forte e merece ser vivido. Ao mesmo tempo que dá uma bagunçada,
em tudo tem a calmaria. Daí as coisas começam a surgir com poesia e
beleza. É preciso ter a disponibilidade de ir para a arte, não trilhar o
caminho da organização, da rigidez e do racional.
Folha - Você tem medo?
Bete - Tenho de mim mesma. Às
vezes dá uma excitação descomunal e incontrolável. Vem no sono,
atrapalha. Mas tenho medo de tudo, menos de teatro. Sempre tive
isso: por que eu escolho certo tipo
de coisa? Há necessidade de eu estar deslocando as coisas, de quebrar com tudo, e o Zé tem feito isso. Não fazia idéia de que existisse
um diretor assim no Brasil.
Folha - Você e Cacilda também
são mistura explosiva para o Oficina. O texto da peça parece dizer:
tudo que fizemos até hoje foi também por esse tipo mais tradicional
ou diverso de teatro. O Oficina vive
uma suspensão de julgamento em
relação ao que é teatro.
Bete - O texto tem isso. Sou uma
atriz sendo dirigida pelo Zé Celso,
que vem com toda a carga do Oficina, da década de 60 e tal. Ele mesmo diz: "Vamos jogar esse 68 fora,
tudo que veio de ruim desde lá. Esse aneurisma da Cacilda, esse sangue que corre, a metáfora disso,
das coisas inviáveis, dificuldades
políticas, históricas, artísticas".
Estou no Oficina para fazer o
meu teatro, junto com o teatro dessa mulher. Brincando de Cacilda
Becker, que está brincando com os
personagens das peças que ela fez.
É um pacto de crianças. O Oficina
está brincando de vários teatros.
Faz coisas a que, eu imagino, ele já
se opôs ou se opõe. Ao mesmo
tempo, mantém-se fiel ao teatro de
Treplev (personagem da peça "A
Gaivota", de Tchecov), que se recusa a separar personagem e vida.
Folha - A peça é a encenação do
delírio. Cacilda passa a vida em revista, como o teatro parece fazer a
revisão de sua trajetória. Para você
também é um balanço?
Bete - Estava com o teatro adormecido em mim. Não sabia como
acordar. O fato de o Zé ter me dado
esse presente fez com que despertasse. Morrer por isso está valendo
a pena. Cacilda morre no meio de
"Esperando Godot". Foi uma morte que valeu a pena. Acordou um
negócio em mim: vamos brincar
de novo, pára de ter medo de envelhecer, pára de ser madame.
O fato de ficar um pouco mais velha, de fazer um pouco mais de TV
e não encontrar eco novo em teatro é complicado.
Folha - Algo limitava o que você
achava possível realizar?
Bete - Exato, com um carimbo
em cima chamado "profissional".
Rasgaram esse meu documento.
Achava que aqueles exercícios do
grupo eram insignificantes. Coisas
como fazer um roteiro da peça:
abria-se um rolo de papel e se desenhava, escrevia, brincava.
Hoje, se não fossem esses rolos,
essas jornadas intermináveis, nada
teria acontecido. Ali se leva em
consideração o que em teatro se
chama procura. O Zé me fez lembrar que ofício é esse.
Folha - Pensou em desistir?
Bete - Inúmeras vezes. Sempre
algum impulso me levava de volta
ao Oficina. Como se estivesse esperando Godot. A peça é meio isso. A
gente espera Godot ali, mas acredita que dessa vez Godot vai chegar.
É engraçado que esses momentos de desistência eram como coisas proibidas, como se pensar em
desistir fosse mais do que traição.
Seria uma covardia insuportável.
Se eu desistisse, não poderia continuar vivendo dignamente. Essa
entrevista está psicanalítica...
Folha - Você faz psicanálise?
Bete - Comecei uma vez, durou
só duas semanas. Sou muito atriz.
Fazer teatro desde os 9 anos me dá
uma consciência de fora para dentro, estética, de estar me observando o tempo todo, que é insuportável. Com outra pessoa, vira encenação. Deveria fazer análise para
quebrar com esse olhar, mas não
amadureci o suficiente.
Folha - Você falou em sacrilégio.
Não seria porque a peça tem um
tom mítico, elevando uma biografia a uma espécie de altar?
Bete - A impressão que dá é a de
que o Zé coloca Cacilda como o
útero, a terra do teatro, aquela que
recebe, que vai germinar, como se
fosse a encarnação do ressurgimento do teatro.
Tanto é que a peça começa com o
encontro de Demeterra e Persefone (na mitologia grega, Perséfone
é obrigada a passar o resto de sua
vida nas profundezas; sua mãe,
Deméter, consegue que a pena seja
mudada para passar parte do ano
com os vivos e a outra parte com
os mortos).
Demeterra indo recuperar a filha
do inferno. O pacto é justamente
de se plantar. Se a paixão for cultivada, é possível ter Persefone de
volta.
Folha - Isso tem a ver com o que
você falou do medo. Ninguém gosta de ir para baixo da terra. Se gostar, algo está errado. Mas parece
precisar ir.
Bete - Tem uma frase bonita em
"Cacilda!": "Quando se é feliz, não
é difícil morrer". Mesmo quando
morre, tem o derrame, ela é uma
música cantada, não é sofrida. É só
emocionante. Não tem o esganiçar, o lamento da tragédia. Cheguei pronta para o aneurisma, para
cair, estrebuchar. O Zé tirou tudo
isso e deixou a coisa mais linda.
Como quando ela cai e a camareira vem com o batom vermelho,
desenha o sangue no chão que vai
virar o sangue que percorre todo o
palco, a passarela. Depois o fio da
menstruação corre também pela
passarela. Quando penso nesses
fios, acho coisa de gênio.
Folha - Como é atuar numa relação tão próxima da platéia como a
que existe no Oficina?
Bete - Eu amei palco italiano. Ali
eu me sinto alguém. É o oposto de
fazer essa peça, trocar de roupa no
centro do teatro, com gente em todos os pontos. É um despojamento
que não tinha. Agora, quero que
abra mais ainda, que desmonte tudo. Antes, adorava um foco de luz
que me cegava, para poder não ver,
como se fosse uma defesa. Agora,
quanto mais ensaio, mais quero
ver as pessoas, o teatro.
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