São Paulo, sábado, 5 de setembro de 1998

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CACILDA!
"É um pacto de crianças', diz Bete Coelho

da Reportagem Local

Bete Coelho revela que seu interesse pelo teatro estava adormecido até a decisão de fazer "Cacilda!" com José Celso Martinez Corrêa. A distância deu lugar à identidade. Ela já maneja com habilidade o universo de termos do encenador.
Fala como a senhora do teatro Oficina. Nos ensaios, sua voz não parece vir da garganta, mas se formar numa caixa mais ampla, como se a própria sala de espetáculos criasse sons. Ao falar, ela dirige os olhos para as mãos em concha, a procurar palavras num texto que ali estivesse escrito.
(MARIO VITOR SANTOS)

Folha - Como você se juntou ao Oficina e a José Celso, de quem parecia tão distante?
Bete Coelho -
Logo que escreveu o texto, o Zé pensou em mim. Trabalhava com o Gerald Thomas na época, achava muito estranho atuar com o Zé Celso. Fui fazer TV, minha vida mudou. Mais recentemente, passamos semanas lendo a peça. Querendo fazer, mas achando utópico. A impressão é que precisa de uns 30 atores, pelas várias personagens que tem.
O texto existe como superprodução. Se fosse montado com muito dinheiro nos EUA, na Broadway, não teria coisas tão maravilhosas como as que existem na cabeça do Zé. Como o sangue do aneurisma de Cacilda, que passa pelo corredor do teatro, um plástico e uma água tinta. Só no Oficina essa qualidade de alegria supera a falta de grana. A impossibilidade de fazer a peça tem um valor inigualável.
Folha - Você se considera uma ponte entre Oficina e a Broadway?
Bete -
A Cacilda já traz isso, o fato de ela ser de um teatro mais tradicional. O teatro dela me possibilita fazer o teatro que eu vivi. Tem momentos na peça em que existe até um confronto entre a tragicomediorgia e o teatrão.
Folha - Há mais identidade ou atritos entre você e Zé Celso?
Bete -
Uma identidade que, embora não se saiba de onde ou por que surgiu, é absoluta. Ele é vidente do ator e do ser humano. Nos apaixonamos pelas coisas em volta, as pessoas. A gente come aquilo que cerca para vomitar em cena e tornar a coisa mais viva. Nossos focos são diferentes. Só que tem esse negócio comum chamado Cacilda.
Folha - O que você quer dizer com focos diferentes?
Bete -
O Zé tem uma necessidade de caotizar, de destruir para o renascimento. É como se dinamitasse tudo para ver o que realmente é forte e merece ser vivido. Ao mesmo tempo que dá uma bagunçada, em tudo tem a calmaria. Daí as coisas começam a surgir com poesia e beleza. É preciso ter a disponibilidade de ir para a arte, não trilhar o caminho da organização, da rigidez e do racional.
Folha - Você tem medo?
Bete -
Tenho de mim mesma. Às vezes dá uma excitação descomunal e incontrolável. Vem no sono, atrapalha. Mas tenho medo de tudo, menos de teatro. Sempre tive isso: por que eu escolho certo tipo de coisa? Há necessidade de eu estar deslocando as coisas, de quebrar com tudo, e o Zé tem feito isso. Não fazia idéia de que existisse um diretor assim no Brasil.
Folha - Você e Cacilda também são mistura explosiva para o Oficina. O texto da peça parece dizer: tudo que fizemos até hoje foi também por esse tipo mais tradicional ou diverso de teatro. O Oficina vive uma suspensão de julgamento em relação ao que é teatro.
Bete -
O texto tem isso. Sou uma atriz sendo dirigida pelo Zé Celso, que vem com toda a carga do Oficina, da década de 60 e tal. Ele mesmo diz: "Vamos jogar esse 68 fora, tudo que veio de ruim desde lá. Esse aneurisma da Cacilda, esse sangue que corre, a metáfora disso, das coisas inviáveis, dificuldades políticas, históricas, artísticas".
Estou no Oficina para fazer o meu teatro, junto com o teatro dessa mulher. Brincando de Cacilda Becker, que está brincando com os personagens das peças que ela fez. É um pacto de crianças. O Oficina está brincando de vários teatros. Faz coisas a que, eu imagino, ele já se opôs ou se opõe. Ao mesmo tempo, mantém-se fiel ao teatro de Treplev (personagem da peça "A Gaivota", de Tchecov), que se recusa a separar personagem e vida.
Folha - A peça é a encenação do delírio. Cacilda passa a vida em revista, como o teatro parece fazer a revisão de sua trajetória. Para você também é um balanço?
Bete -
Estava com o teatro adormecido em mim. Não sabia como acordar. O fato de o Zé ter me dado esse presente fez com que despertasse. Morrer por isso está valendo a pena. Cacilda morre no meio de "Esperando Godot". Foi uma morte que valeu a pena. Acordou um negócio em mim: vamos brincar de novo, pára de ter medo de envelhecer, pára de ser madame.
O fato de ficar um pouco mais velha, de fazer um pouco mais de TV e não encontrar eco novo em teatro é complicado.
Folha - Algo limitava o que você achava possível realizar?
Bete -
Exato, com um carimbo em cima chamado "profissional". Rasgaram esse meu documento. Achava que aqueles exercícios do grupo eram insignificantes. Coisas como fazer um roteiro da peça: abria-se um rolo de papel e se desenhava, escrevia, brincava.
Hoje, se não fossem esses rolos, essas jornadas intermináveis, nada teria acontecido. Ali se leva em consideração o que em teatro se chama procura. O Zé me fez lembrar que ofício é esse.
Folha - Pensou em desistir?
Bete -
Inúmeras vezes. Sempre algum impulso me levava de volta ao Oficina. Como se estivesse esperando Godot. A peça é meio isso. A gente espera Godot ali, mas acredita que dessa vez Godot vai chegar.
É engraçado que esses momentos de desistência eram como coisas proibidas, como se pensar em desistir fosse mais do que traição. Seria uma covardia insuportável. Se eu desistisse, não poderia continuar vivendo dignamente. Essa entrevista está psicanalítica...
Folha - Você faz psicanálise?
Bete -
Comecei uma vez, durou só duas semanas. Sou muito atriz. Fazer teatro desde os 9 anos me dá uma consciência de fora para dentro, estética, de estar me observando o tempo todo, que é insuportável. Com outra pessoa, vira encenação. Deveria fazer análise para quebrar com esse olhar, mas não amadureci o suficiente.
Folha - Você falou em sacrilégio. Não seria porque a peça tem um tom mítico, elevando uma biografia a uma espécie de altar?
Bete -
A impressão que dá é a de que o Zé coloca Cacilda como o útero, a terra do teatro, aquela que recebe, que vai germinar, como se fosse a encarnação do ressurgimento do teatro.
Tanto é que a peça começa com o encontro de Demeterra e Persefone (na mitologia grega, Perséfone é obrigada a passar o resto de sua vida nas profundezas; sua mãe, Deméter, consegue que a pena seja mudada para passar parte do ano com os vivos e a outra parte com os mortos).
Demeterra indo recuperar a filha do inferno. O pacto é justamente de se plantar. Se a paixão for cultivada, é possível ter Persefone de volta.
Folha - Isso tem a ver com o que você falou do medo. Ninguém gosta de ir para baixo da terra. Se gostar, algo está errado. Mas parece precisar ir.
Bete -
Tem uma frase bonita em "Cacilda!": "Quando se é feliz, não é difícil morrer". Mesmo quando morre, tem o derrame, ela é uma música cantada, não é sofrida. É só emocionante. Não tem o esganiçar, o lamento da tragédia. Cheguei pronta para o aneurisma, para cair, estrebuchar. O Zé tirou tudo isso e deixou a coisa mais linda.
Como quando ela cai e a camareira vem com o batom vermelho, desenha o sangue no chão que vai virar o sangue que percorre todo o palco, a passarela. Depois o fio da menstruação corre também pela passarela. Quando penso nesses fios, acho coisa de gênio.
Folha - Como é atuar numa relação tão próxima da platéia como a que existe no Oficina?
Bete -
Eu amei palco italiano. Ali eu me sinto alguém. É o oposto de fazer essa peça, trocar de roupa no centro do teatro, com gente em todos os pontos. É um despojamento que não tinha. Agora, quero que abra mais ainda, que desmonte tudo. Antes, adorava um foco de luz que me cegava, para poder não ver, como se fosse uma defesa. Agora, quanto mais ensaio, mais quero ver as pessoas, o teatro.



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