São Paulo, Terça-feira, 05 de Outubro de 1999
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LIVRO/LANÇAMENTO
Vida e música do sambista são tema de obras assinadas por uma antropóloga e por um vereador
Literatura "enquadra" Bezerra da Silva

BRUNO GARCEZ
da "Revista da Hora"

O samba do cantor Bezerra da Silva, 62, desceu os morros e chegou à literatura com uma obra que joga luz sobre episódios pouco conhecidos de sua vida.
Em "Bezerra da Silva - Produto do Morro", a antropóloga Letícia Vianna, além de enfocar a obra do sambista, aborda os anos em que Bezerra viveu como mendigo nas ruas do Rio, seu processo de reintegração social com o auxílio de um terreiro de umbanda e o ingresso, seguido de expulsão, na Marinha Mercante.
Além do livro de Letícia Vianna, que será lançado hoje no Rio, Bezerra deve ser tema de uma outra biografia, cuja maior curiosidade é o próprio autor, o vereador Ivo Morganti (PMDB-SP), ex-radialista e ex-apresentador do programa "Aqui Agora".
Avesso à política partidária, a ponto de defender o voto nulo, Bezerra terá sua vida contada por um político que se celebrizou por decisões controversas, entre elas as votações contra a CPI dos Precatórios e contra a prorrogação da CPI da máfia da propina.
"O que me levou a querer escrever o livro foi meu lado jornalista. O autor não será o político, mas sim o homem, o cidadão", diz Morganti. O vereador está na fase das entrevistas e só começa efetivamente a escrever daqui a alguns meses.
O livro de Letícia Vianna não pretende ser uma biografia no sentido clássico, como a que Morganti vai escrever. "Bezerra da Silva - Produto do Morro" intercala episódios da vida do sambista, citações de sociólogos e análises de letras. A obra é uma adaptação da tese de doutorado da autora pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, concluída em dezembro.
A despeito do viés sociológico, o tratamento não é puramente acadêmico. O livro traz um glossário com termos do sambista (veja quadro ao lado) e descreve passagens saborosas de sua vida, como no trecho em Bezerra conta ter sofrido assédio sexual de um superior na Marinha Mercante.
A resposta ao assédio foi um desacato que lhe valeu uma temporada no xadrez. Ao sair da prisão, Bezerra foi expulso em uma solenidade oficial e não deixou passar barato: "Eu gritava bem alto, na Marinha Mercante todo mundo é veado!", conta no livro.

Da sarjeta ao samba
O início da trajetória de Bezerra da Silva é incerto. Segundo seu registro de nascimento, José Bezerra da Silva veio ao mundo em 23 de fevereiro de 1927, em Recife (PE), mas sua mãe, Hercília Pereira da Silva, diz que a data não é correta. A mãe de José foi abandonada pelo marido quando grávida do filho. Seu pai, Alexandrino Bezerra da Silva, não procurou mais a família e foi morar no Rio.
As veleidades musicais de José, que cedo se manifestaram, foram reprimidas por sua mãe e seu padrasto. No entender deles, música não era profissão. O jeito foi repetir os passos do pai e ingressar na Marinha Mercante.
Após a expulsão da corporação, José, aos 15 anos de idade, viajou clandestino em um navio, com destino ao Rio, onde pretendia encontrar o pai. Ele achou o endereço de seu Alexandrino, mas o encontro foi desastroso. Após uma semana na casa do pai, os dois se desentenderam e Bezerra nunca mais tornou a vê-lo.
No Rio, sem ter outras perspectivas, acabou indo trabalhar na construção civil e foi morar em um barraco no morro do Cantagalo (zona sul da cidade). Foi aí que que começou a temporada de visitas às delegacias do Rio. Bezerra calcula ter sido detido 21 vezes.
"Eu entrava em cana até duas vezes no mesmo dia. Eles prendiam uns otários, trabalhadores. Eu era detido, mas solto em seguida. Nunca sofri nenhum processo", afirma Bezerra.
Entre 1954 e 61, Bezerra, sem encontrar emprego, foi morar nas ruas. Segundo Letícia Vianna, quem levantou o tema foi próprio sambista, nas entrevistas que lhe concedeu. "Ele falou até sobre sua abstinência sexual nessa época."
Bezerra conta que o jejum sexual a que esteve submetido não chegou a ser total. "Teve umas duas vezes que deu para arrumar mulher. Uma debaixo de uma ponte e outra que acabei perdendo para um padeiro que deu a ela um pão doce", lembra, rindo.
A reintegração à sociedade se deu após uma passagem por um terreiro de umbanda, onde Bezerra foi acolhido. Lá, descobriu sua mediunidade e soube, por meio de uma mãe-de-santo, que seu destino era a música. Compôs uma canção de Carnaval, em 65, gravada por Marlene, mas só em 70 foi gravar seu primeiro LP.
Seus dois primeiros trabalhos são discos de coco, que ficaram engavetados por vários anos. Mais tarde é que enveredou pelo samba de partido alto, gênero que o celebrizou e com o qual construiu sua persona musical: o cantor das mazelas do morro, cronista da violência policial e comentarista irônico do tráfico e consumo de drogas. Bezerra está prestes a lançar seu 25º CD, gravado ao vivo na favela da Rocinha. O título da faixa de trabalho é pitoresco: "Se Leonardo da Vinci Porque Que Eu Não Posso Dar Dois?"



Livro: Bezerra da Silva - Produto do Morro
Autora: Letícia Vianna
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 20
Quando: hoje, às 20h
Onde: Contracapa (r. Dias Ferreira, 214, Leblon, tel. 0/xx/21/511-4082)





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