São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

Obra escrita pela pesquisadora Marina de Mello e Souza tematiza as relações entre o continente e o país

"Reis Negros" busca raiz africana do Brasil

JOANA MONTELEONE
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Ao som de um batuque ritmado, o cortejo se prepara para sair. Paramentados com saias rodadas, cetros dourados e mantos brilhantes, dançando em louvor a Deus e a Nossa Senhora, a procissão tem seu auge na coroação do rei e da rainha do Congo. Chamadas de congadas, essas festas populares ainda são celebradas em diversas cidades brasileiras, especialmente na região Sudeste. Sua origem remonta aos primórdios da escravidão, quando os primeiros africanos chegaram ao país.
Determinada a recuperar a história das relações entre a África e o Brasil, a professora da USP Marina de Mello e Souza se voltou para o passado do Congo.
O resultado é o recém-lançado "Reis Negros no Brasil Escravista", livro que se insere num novo modo de estudar a herança africana no Brasil, modo no qual tal herança é entendida na sua relação com a história da África.
Usando elementos que misturam o catolicismo e a cultura africana, as coroações dos reis do Congo sempre foram vistas como uma vitória da influência portuguesa. Para Mello e Souza, isso não é totalmente verdade: são também uma vitória da influência da cultura trazida da África.
Ao aportarem no Congo no final do século 15, os portugueses encontraram uma sociedade que acreditava que os homens brancos vindos do mar eram mensageiros dos deuses. A conversão ao catolicismo aconteceu naturalmente, sendo que o rei do Congo foi um dos primeiros a ser convertido, seguido por sua corte.
"Ser católico era um símbolo de poder", diz a pesquisadora. "Mas é preciso notar que o catolicismo seguido pelos africanos era especial." Conduzido à moda congolesa, os ritos e dogmas católicos foram adaptados à realidade africana. De um lado os portugueses acreditavam ter convertido todo o reino do Congo. De outro, os congoleses misturavam práticas pagãs com símbolos católicos.
"Por muito tempo acreditou-se que os povos não letrados não possuíam história", diz Mello e Souza. "Nesse sentido é surpreendente se deparar com uma sociedade tão bem estruturada quanto o Reino do Congo no século 15."
Era organização social complexa, com rei, nobreza e Estados que coletavam impostos e planejavam a produção agrícola. E a vida religiosa regia o casamento (a poligamia era regra) e usava elementos simbólicos no culto aos deuses.
Embora o Reino do Congo fosse o mais organizado, não havia uma espécie de união africana. O continente era marcado pela diversidade cultural, com muitas línguas e também muitas tribos em constantes guerras.
"Ao serem arrancados de suas aldeias e transportados pelo continente africano rumo às feiras regionais e aos portos costeiros, os escravos de diferentes etnias misturaram-se", diz Mello e Souza. "Eles tiveram de aprender a se comunicar, superando as barreiras regionais. Criavam novos laços de sociabilidade que se consolidaram durante a travessia atlântica."
No Brasil, esses laços "se institucionalizaram na sociedade escravista colonial, à qual foram inseridos à força, acabando por encontrar formas de integração".
Produtos do encontro das culturas africana e ibérica, a festa de coração dos Reis do Congo na América adquiriu novo significado. Mais do que elementos de resistência, como a capoeira e a umbanda, as congadas atestam para o sincretismo religioso e cultural.


REIS NEGROS NO BRASIL ESCRAVISTA.
De: Marina de Mello e Souza. Editora: UFMG. Quanto: R$ 35 (394 págs.).




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