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CARLOS HEITOR CONY
Grande cena do homem gordo no aeroporto
Já tinha feito o check-in e ia passando pelo detector de metais, que
sempre apita contra mim, alertando a sociedade contra os meus
trocados e um pente que comprei
em Toledo, com um escudo da cidade de El Greco gravado no cabo
de tartaruga. Vi o homem gordo
que se dirigia ao balcão para fazer
o mesmíssimo check-in.
Tive um pressentimento atroz.
Enorme, rotundo, com um suspensório imenso que parecia a
parte inicial de um pára-quedas,
aquele gordo não caberia em nenhum assento da classe única daquele vôo. Bem verdade que eu estava indo para São Paulo, e o gordo poderia estar indo para qualquer outro lugar do Brasil e do
mundo. Foi tal o pavor que me
inspirou, que tive a certeza. Ele
também iria para São Paulo e no
mesmo vôo.
Com o coração apertado, suando frio, acompanhei-o em sua lenta peregrinação do balcão, onde
recebeu o cartão de embarque, até
o mesmo detector de metais, que
não apenas apitou contra ele, mas
quase ia criando um rolo. Obrigaram o sujeito a tirar quase tudo o
que podia ser tirado, inclusive o
suspensório, que tinha umas fivelas cromadas para aumentar ou
diminuir a complicada engenharia que lhe sustentava as calças.
Sem suspensório, segurando as
descomunais calças com as mãos,
ele continuou apitando. Convocaram um cara que parecia o chefe
da segurança, houve complicadas
negociações entre o homem gordo
e as autoridades que zelam pela
segurança dos aeroportos.
Vi o homem gordo fazer uma
coisa espantosa. Viva eu mil anos,
2.000 anos, e não esquecerei a cena. Continuando a segurar as calças com a mão esquerda, com a
mão direita abriu dois botões da
camisa e mostrou um pedaço de
sua enorme barriga, um latifúndio de carne cabeluda, onde se
destacava a imensa cicatriz de
uma cirurgia, dessas de arrasar
quarteirão.
Diante daquele talho, as autoridades deram-se por satisfeitas. O
sujeito tinha grampos metálicos
em seus imensos, intermináveis
intestinos, e não podia tirar aqueles grampos só para assegurar a
tranquilidade do tráfego aéreo.
Liberado, ele se recompôs, com
louvável resignação, evidente que
já passara por aquele transe inúmeras vezes.
Do meu canto, eu torcera ferozmente para que ele fosse levado
para qualquer outro lugar, menos
para a sala de espera. A certeza de
que seria meu companheiro de
viagem era também feroz. Vi o
homem gordo consultar o painel
que indicava as partidas, o menu
eletrônico oferecia uns 20 vôos diferentes, mas era o 251 que ele
conferia, exatamente o mesmo
251 que constava no meu cartão
de embarque.
Aprendi, desde criança, que desgraça pouca é bobagem, queijo
em francês é fromagem (devia ser
""fromage", mas o carioca que fez
o ditado pensou na rima e saiu-se
com o fromagem). A moça chamou o vôo 251, e fui um dos primeiros a entrar na fila. Conferi
meu assento: 16 A. Olhei os dois
restantes na mesma fileira, tão estreitos como o meu. Seria muito
azar ter o homem gordo no 16 B.
Vi entrar os demais passageiros,
aquela confusão rotineira até que
todos encontrem seu lugar. Suando cada vez mais frio, vi o homem
gordo entupir a entrada lá na
frente. Minha esperança era que,
em face de seu ostensivo volume,
as comissárias de bordo o impedissem de entrar, remetendo-o ao
portão do aparelho, onde viajam
os volumes impróprios à cabine.
Ele veio vindo pelo corredor, espremendo-se entre as duas fileiras
de poltronas. À frente dele, abrira-se um vácuo, pois o homem era
lento, e todos já haviam encontrado seus assentos. Atrás dele,
amontoava-se o resto dos passageiros. Ele parecia liderar a marcha da plebe para o infinito.
Aterrado, notei que o homem
gordo procurava o seu lugar,
olhando molemente aquela plaquinha que indica os assentos. Vi
o homem passar pela fileira do 14
e do 15. Por um instante, ele ficou
indeciso, e eu também. Ele poderia ir para o fundo do avião, lá
perto dos banheiros. Mas não. Para meu horror, deteve-se na fila
16, olhou novamente a plaquinha,
conferiu com o seu cartão, lançou
um olhar periférico para a cauda,
onde havia assentos ainda vazios.
Não trazia embrulhos nem
qualquer bagagem de mão. Ele
apenas se trazia. Mas era, em si,
um embrulho, uma carga que devia pagar excesso de bagagem.
Olhou-me neutramente, acho que
fez um ligeiro cumprimento, como se desculpando por estar ali.
Gemendo, espremeu-se na poltrona 16C.
Desde que Arquimedes criou algumas leis básicas da física, acho
que nunca se ousou contraditar os
elementos fundamentais que regem o equilíbrio universal. Um
deles é que a parte não pode ser
maior do que o todo. O homem
gordo era a parte. O que sobrava
do mundo seria o todo.
Testemunhei esse evento transcendental que fez tábula rasa de
tudo o que aprendi nos bancos escolares. Fantasticamente, ele coube no estreito espaço onde Goethe,
num monólogo do ""Fausto", garantiu que cabia toda a angústia
humana. Cabia a minha angústia, também.
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