São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
Grande cena do homem gordo no aeroporto

Já tinha feito o check-in e ia passando pelo detector de metais, que sempre apita contra mim, alertando a sociedade contra os meus trocados e um pente que comprei em Toledo, com um escudo da cidade de El Greco gravado no cabo de tartaruga. Vi o homem gordo que se dirigia ao balcão para fazer o mesmíssimo check-in.
Tive um pressentimento atroz. Enorme, rotundo, com um suspensório imenso que parecia a parte inicial de um pára-quedas, aquele gordo não caberia em nenhum assento da classe única daquele vôo. Bem verdade que eu estava indo para São Paulo, e o gordo poderia estar indo para qualquer outro lugar do Brasil e do mundo. Foi tal o pavor que me inspirou, que tive a certeza. Ele também iria para São Paulo e no mesmo vôo.
Com o coração apertado, suando frio, acompanhei-o em sua lenta peregrinação do balcão, onde recebeu o cartão de embarque, até o mesmo detector de metais, que não apenas apitou contra ele, mas quase ia criando um rolo. Obrigaram o sujeito a tirar quase tudo o que podia ser tirado, inclusive o suspensório, que tinha umas fivelas cromadas para aumentar ou diminuir a complicada engenharia que lhe sustentava as calças.
Sem suspensório, segurando as descomunais calças com as mãos, ele continuou apitando. Convocaram um cara que parecia o chefe da segurança, houve complicadas negociações entre o homem gordo e as autoridades que zelam pela segurança dos aeroportos.
Vi o homem gordo fazer uma coisa espantosa. Viva eu mil anos, 2.000 anos, e não esquecerei a cena. Continuando a segurar as calças com a mão esquerda, com a mão direita abriu dois botões da camisa e mostrou um pedaço de sua enorme barriga, um latifúndio de carne cabeluda, onde se destacava a imensa cicatriz de uma cirurgia, dessas de arrasar quarteirão.
Diante daquele talho, as autoridades deram-se por satisfeitas. O sujeito tinha grampos metálicos em seus imensos, intermináveis intestinos, e não podia tirar aqueles grampos só para assegurar a tranquilidade do tráfego aéreo. Liberado, ele se recompôs, com louvável resignação, evidente que já passara por aquele transe inúmeras vezes.
Do meu canto, eu torcera ferozmente para que ele fosse levado para qualquer outro lugar, menos para a sala de espera. A certeza de que seria meu companheiro de viagem era também feroz. Vi o homem gordo consultar o painel que indicava as partidas, o menu eletrônico oferecia uns 20 vôos diferentes, mas era o 251 que ele conferia, exatamente o mesmo 251 que constava no meu cartão de embarque.
Aprendi, desde criança, que desgraça pouca é bobagem, queijo em francês é fromagem (devia ser ""fromage", mas o carioca que fez o ditado pensou na rima e saiu-se com o fromagem). A moça chamou o vôo 251, e fui um dos primeiros a entrar na fila. Conferi meu assento: 16 A. Olhei os dois restantes na mesma fileira, tão estreitos como o meu. Seria muito azar ter o homem gordo no 16 B.
Vi entrar os demais passageiros, aquela confusão rotineira até que todos encontrem seu lugar. Suando cada vez mais frio, vi o homem gordo entupir a entrada lá na frente. Minha esperança era que, em face de seu ostensivo volume, as comissárias de bordo o impedissem de entrar, remetendo-o ao portão do aparelho, onde viajam os volumes impróprios à cabine.
Ele veio vindo pelo corredor, espremendo-se entre as duas fileiras de poltronas. À frente dele, abrira-se um vácuo, pois o homem era lento, e todos já haviam encontrado seus assentos. Atrás dele, amontoava-se o resto dos passageiros. Ele parecia liderar a marcha da plebe para o infinito.
Aterrado, notei que o homem gordo procurava o seu lugar, olhando molemente aquela plaquinha que indica os assentos. Vi o homem passar pela fileira do 14 e do 15. Por um instante, ele ficou indeciso, e eu também. Ele poderia ir para o fundo do avião, lá perto dos banheiros. Mas não. Para meu horror, deteve-se na fila 16, olhou novamente a plaquinha, conferiu com o seu cartão, lançou um olhar periférico para a cauda, onde havia assentos ainda vazios.
Não trazia embrulhos nem qualquer bagagem de mão. Ele apenas se trazia. Mas era, em si, um embrulho, uma carga que devia pagar excesso de bagagem. Olhou-me neutramente, acho que fez um ligeiro cumprimento, como se desculpando por estar ali. Gemendo, espremeu-se na poltrona 16C.
Desde que Arquimedes criou algumas leis básicas da física, acho que nunca se ousou contraditar os elementos fundamentais que regem o equilíbrio universal. Um deles é que a parte não pode ser maior do que o todo. O homem gordo era a parte. O que sobrava do mundo seria o todo.
Testemunhei esse evento transcendental que fez tábula rasa de tudo o que aprendi nos bancos escolares. Fantasticamente, ele coube no estreito espaço onde Goethe, num monólogo do ""Fausto", garantiu que cabia toda a angústia humana. Cabia a minha angústia, também.


Texto Anterior: Erudito: Montserrat Caballé volta ao Brasil
Próximo Texto: Música: Suba concluiu CD de Bebel Gilberto
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.