São Paulo, sábado, 06 de janeiro de 2001

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FOLHA INÉDITOS

O amigo russo e as almas aldeãs

Leia trecho de "A Aldeia de Stiepântchikov e Seus Habitantes", que chega ao catálogo nacional das obras de Dostoiévski pela Nova Alexandria

Confesso que me acovardei um pouco. Os sonhos românticos pareceram-me, de repente, tão estranhos e até tolos logo que entrei em Stiepântchikov. Seriam umas cinco da tarde. O caminho seguia ao lado do jardim senhorial. Novamente, depois de longos anos de ausência, vi esse enorme jardim, onde passei, de relâmpago, alguns dias felizes da minha infância, com os quais sonhei muitas vezes nos dormitórios das escolas que cuidaram da minha instrução. Pulei do carro e fui atravessando o jardim diretamente para a casa do meu tio. Gostaria de aparecer lá despercebido, fazer perguntas, tirar informações e depois conversar à vontade com meu tio. Foi justamente assim que aconteceu. Ao atravessar a alameda de tílias centenárias, subi ao terraço, cuja porta envidraçada interna levava para os aposentos. Em volta do terraço havia canteiros floridos e as beiradas estavam repletas de vasos com plantas raras. Do pessoal de casa encontrei apenas o velho Gavrila que, noutros tempos, cuidou de mim e agora era o camareiro de honra do meu tio. O velho estava de óculos, absorto pela leitura de um caderno que tinha nas mãos. Nós nos encontráramos em Petersburgo havia dois anos, onde esteve junto com o meu tio, e por isso reconheceu-me no mesmo instante. Com lágrimas de alegria lançou-se a beijar minhas mãos deixando, com isso, escorregar seus óculos do nariz para o chão. Essa demonstração de afeto do velho comoveu-me muito. Mas como estava ainda perturbado pela recente conversa com o senhor Bakhtchéiev, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o estranho caderno nas mãos de Gavrila.
- O que é isso, Gavrila? Será que estão lhe ensinando francês também?
- Estão, sim, querido, feito a um papagaio, isso na minha idade - respondeu tristemente Gavrila.
- É o próprio Fomá quem ensina?
- Ele mesmo, meu querido. Deve ser uma pessoa inteligentíssima.
- Ah, sem dúvida! Um sabichão, Deus me livre! Ensina conversando?
- Pelo caderno, querido.
- O que é isso nas suas mãos? Ah sim, palavras francesas em letras russas! Que espertinho! E vocês vão atrás de um burro, de um idiota total! Não tem vergonha, Gavrila? - exclamei eu, esquecendo no mesmo instante todas as minhas suposições caridosas sobre Fomá Fomitch, por causa das quais apanhara do senhor Bakhtchéiev havia tão pouco tempo.
- Mas como, querido, como é que pode ser burro, se ele manda e desmanda em nossos amos?
- Hum, talvez você tenha razão, Gavrila -murmurei, desconcertado por essa observação.- Leve-me até meu tio.
- Meu querido! É que não posso aparecer na frente dele, não me atrevo. Até dele comecei a ter medo também. Então fico por aqui, aguentando minha desgraça, escondo-me atrás dos canteiros, quando passa por perto.
- Mas tem medo por quê?
- Outro dia não aprendi a lição. Fomá Fomitch mandou-me ficar de joelhos, mas não fiquei. Estou velho já, meu querido Serguei Aleksándrovitch, para alguém fazer essas brincadeiras comigo. O amo ficou zangado: por que é que não obedeci a Fomá Fomitch. "Ele está cuidando da sua pronúncia, seu diabo velho!" Por isso ando por aqui, aprendendo o vocábulo de cor. Fomá Fomitch ameaçou fazer-me outro exame hoje no final da tarde.
Pareceu-me que alguma coisa estava mal contada. Que havia uma outra história com esse francês que o velho não soube explicar.
- Uma pergunta, Gavrila. Como ele é? Bem-apessoado, alto?
- Quem? Fomá Fomitch? Que nada. É um homenzinho tão insignificante!
- Tenha paciência, Gavrila, pode ser que tudo se arranje ainda; com certeza vai se arranjar, eu lhe prometo! Mas... onde é que está meu tio?
- Atrás da cavalariça, atendendo os mujiques de Kapitónovka. Ouviram dizer que vão ser escriturados para Fomá Fomitch. Vieram os mais velhos com súplicas.
- Mas por que atrás da cavalariça?
- Porque está com receio, querido.
De fato, achei meu tio atrás da cavalariça. Estava num pequeno campo diante de um grupo de camponeses, que lhe fazia reverências insistentes de solicitação, enquanto meu tio parecia tentar explicar-lhes algo com ardor. Aproximei-me e chamei-o. Ele voltou-se e caímos nos braços um do outro.
Meu tio ficou muito feliz em me ver, sua alegria chegava a ser eufórica. Abraçava-me, apertava-me as mãos... Como se recebesse seu filho salvo de algum perigo mortal. Como se, com a minha chegada, eu o livrasse de algum perigo mortal e trouxesse a solução para todos os seus problemas e desavenças, a alegria e a felicidade para ele e para todos seus entes queridos para o resto da vida. Porque meu tio nunca conseguiria ser feliz sozinho. Passados os primeiros arroubos de alegria, agitou-se tanto que se atrapalhou e ficou totalmente confuso. Crivou-me de perguntas, quis levar-me imediatamente e apresentar-me à sua família, então nos dirigimos à casa, mas ele voltou, querendo apresentar-me primeiro aos mujiques de Kapitónovka. Lembro-me de que logo depois ele começou a falar sobre um tal senhor Koróvkin, homem extraordinário, que conhecera três dias antes não sei em que lugar na estrada e que agora aguardava sua visita com impaciência. Depois, esqueceu-se de Koróvkin, passou para outra coisa. Eu o observava com prazer. Respondendo às suas perguntas precipitadas, disse-lhe que gostaria, em lugar de procurar serviço, de continuar dedicando-me às ciências. Logo que toquei nesse assunto, meu tio carregou o cenho e seu rosto adquiriu uma expressão de extrema gravidade. Quando soube que ultimamente eu me dedicara à mineralogia, levantou a cabeça e com orgulho olhou ao redor de si, como se ele, sozinho, sem nenhuma ajuda alheia, tivesse descoberto e descrito toda a mineralogia. Eu já disse antes que diante da palavra "ciência" meu tio experimentava uma espécie de devoção totalmente desinteressada porque ele mesmo não sabia absolutamente nada.
- Ah, irmão, há pessoas neste mundo que sabem tudo! - disse-me ele um dia, com os olhos brilhando de admiração. - A gente fica no meio delas, escuta, e mesmo percebendo que não entende nada, delicia-se. E por quê? Porque nisso está o bem de todos, a inteligência, a felicidade geral! Isso eu entendo. Agora viajo pela ferrovia e meu Iliucha, talvez, voe pelo céu... Afinal, o comércio, a indústria, esses, como se diz, ramos... e o que quer que se diga são úteis. E são mesmo, não é verdade?
Mas voltemos ao nosso encontro.
- Aguarde um pouco, meu amigo -falava rapidamente, esfregando as mãos.- Aguarde e verá esse homem! Pessoa rara, vou lhe dizer, pessoa culta, homem de ciência. Será o homem do século. Não são bonitas as palavras "homem do século"? Foi Fomá quem me explicou... Aguarde que vou apresentá-lo a você.
- Está falando de Fomá Fomitch, tio?
- Não, meu amigo, não. Agora refiro-me a Koróvkin. Isto é, Fomá também, ele... Mas agora estava falando de Koróvkin - acrescentou ele, corando, não se sabe por que, e pareceu ficar confuso logo que se tratou de Fomá.
- E a quais ciências ele se dedica, tio?
- Às ciências, irmãos, às ciências, às ciências em geral! Não sei lhe dizer a quais exatamente, só sei que às ciências. Como ele fala das estradas de ferro! E sabe -acrescentou em voz baixa, piscando o olho direito significativamente-, ele tem um pouco dessas idéias livres! Reparei nisso. Principalmente quando começou a falar sobre a felicidade da vida familiar... Pena que entendi pouco, não tinha tempo, senão contaria tudo para você, tintim por tintim. E além disso é um homem de qualidades mais nobres. Convidei-o para passar uns dias em casa. Estou esperando sua chegada de uma hora para outra.
Nesse meio tempo os mujiques estava observando-me boquiabertos e de olhos esbugalhados, como se eu fosse algum prodígio.
- Escute, tio - interrompi-o-, parece que incomodei os camponeses. Certamente, alguma necessidade trouxe-os aqui. O que é? Confesso que estou a par de algumas coisas e gostaria muito de ouvi-los.
Meu tio, de repente, agitou-se.
- Ah, sim! Já tinha me esquecido... Olha, na verdade, não sei o que fazer com eles. Alguém inventou, e eu gostaria de saber quem foi o primeiro a inventar, que pretendo ceder todos eles, juntamente com Kapitónovka inteira -lembra-se da Kapitónovka? Todos nós, com a falecida Kátia, íamos lá para fazer passeios à tarde - e todas as 68 almas a Fomá Fomitch!
- Então isso não é verdade, tio? Você não vai entregar a ele Kapitónovka? - gritei, quase extasiado.
- Nem pensava, nem me passou pela cabeça! E você, ouviu de quem? Uma vez dei com a língua nos dentes e a coisa foi se espalhando. Por que é que não gostam tanto de Fomá? Espere só, Serguei, vai conhecê-lo -acrescentou ele e olhou para mim com timidez, como se pressentisse em mim mais um inimigo de Fomá. - Vai ver, irmão, que pessoa...
- Queremos continuar com o senhor, e acabou!
- Não queremos ninguém além do senhor, não queremos ninguém! - gritaram, de repente, os mujiques em coro. - O senhor é nosso pai, e nós somos seus filhos!
- Escute, tio - respondi eu-, ainda não vi Fomá Fomitch, mas ouvi falar algumas coisas. Confesso que hoje encontrei-me com o senhor Bakhtchéiev. Aliás, por enquanto, tenho minhas próprias idéias a esse respeito. De qualquer modo, tio, despeça agora os camponeses e conversaremos a sós, nós dois, sem testemunhas. Confesso que vim aqui para isso...
- Exatamente, exatamente - gostou da idéia, meu tio -, despedimos os camponeses e depois conversamos, assim, sabe, como amigos, seriamente! Bom, agora -disse ele apressadamente, dirigindo-se aos mujiques-, agora vão para casa, meus amigos.

Livro: A Aldeia de Stiepântchikov e Seus Habitantes Autor: Fiodor Dostoiévski Tradução: Klara Gourianova Editora: Nova Alexandria Quanto: a definir (248 págs.)


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