São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2000


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ANÁLISE

A Comédia Americana

ARTHUR NESTROVSKI
Colunista da Folha

Existem manhãs assim. Céu azul, sol brilhando, ar limpo, cabeça limpa, coração tranquilo e um bom humor gratuito como o sol e o céu. São manhãs perfeitas para se ler a "New Yorker". Os ideais de civilidade e cordialidade, de graça, espanto e irreverência, de responsabilidade e reverência também, conforme o caso, se harmonizam com a manhã ideal, que é só um cenário da leitura.
Os 3.875 números, publicados ao longo dos últimos 75 anos, deveriam ser o bastante para mostrar que uma revista assim pode ser bem sucedida, até onde menos se espera: neste mundo. Mas não há outra igual, e ninguém consegue achar outra mistura tão particular de interesses e humores, e um estilo tão adequadamente variado para tratar de assuntos tão variadamente adequados, e até inadequados.
Mesmo a seção menos nobre, a simples programação de espetáculos da cidade, não tem nada de simples. Nos pequenos comentários sobre filmes, balés, ou concertos, não menos do que nas resenhas e ensaios, a "New Yorker" já canta com voz própria, afinada e afiada. Uma certa visão cômica tinge a vida de encanto e absurdo. Dante chamava sua comédia de "divina"; Balzac, de "humana". Guardadas as proporções, temos agora uma espécie de "Comédia Americana".
É uma revista para ser lida, coisa mais rara do que se imagina. As revistas semanais, no mundo inteiro, tendem progressivamente à informação e ao serviço, quando muito a um passatempo leve; não à leitura. O prazer da leitura é de outra ordem. Mas ninguém esquece que está lendo a "New Yorker" ou só quando transportado pela própria leitura. Conseguir essa unidade de tom, que não é exatamente uma questão de estilo, mas de pulso e de olho, é uma façanha que se repete a cada sete dias, e cada vez é uma façanha.
Isso vale desde a seção inicial, de casos da cidade ("Talk of the Town"), a mais lida da revista. Vale também para reportagens políticas e sociológicas, outra área de excelência. Ensaios como os de A. J. Liebling sobre a Segunda Guerra, ou de Joseph Mitchel sobre um poeta-vagabundo em Greenwich Village tornaram-se clássicos da prosa americana. Mais recentemente, reportagens de autores como Philip Gourevitch, Michael Ignatieff e Timothy Garton Ash mantém vivo o quociente de indignação da revista. A "New Yorker" é a representante mais notória da razão liberal americana, fundada em princípios democráticos, sustentando o pensamento à esquerda e à direita (mais habitualmente à esquerda).
Mas não se disputa que as páginas mais nobres dessa revista tão nobre ficam mesmo por conta da literatura. Sua lista de colaboradores é uma humilhação para qualquer outra revista e uma alegria para qualquer leitor. Foi ali que Nabokov publicou muitos contos pela primeira vez. John Updike escreve regularmente na revista há 40 anos. Outros americanos: Saul Bellow, Philip Roth, James Baldwin, Gore Vidal, Don DeLillo. De fora: García Marquez, Italo Calvino, Martin Amis, V. S. Naipaul. Nenhuma explicação, ou chamada: os nomes dos autores estão ali, embaixo do título, como se fosse a coisa mais natural. Uma semana depois de Günter Grass receber o Nobel, no ano passado, a "New Yorker" publicou um conto de sua autoria. Devia estar na gaveta, entre tantos outros.
E os poemas? Espalhados ao longo de cada número, exibem o que há de mais relevante na poesia do momento: Joseph Brodsky, John Ashbery, Elisabeth Bishop, Jorge Luis Borges. Nenhuma outra publicação distribui literatura dessa qualidade, para quem quer simplesmente saber o que está passando no cinema.
Todos esses textos fazem a revista ser mais do que é; nalguma medida a revista faz deles, também, uma outra literatura. São autores da "New Yorker", a única revista com dignidade e cenário apropriados para publicar autores dignos de saírem na "New Yorker".
E os desenhos? E os cartuns? E as fotos? Vale, vale, vale. Não existe revista mais bem impressa, que é o mínimo (ou o máximo?) que se pode fazer quando se publica desenhos de Saul Steinberger, capas de Art Spiegelman, fotos de Richard Avedon. O contexto da revista traduz tudo para certo horizonte refinado de humanidade, uma compreensão mundana das coisas que não se rebaixa às mundanidades, mas não castiga as superfícies, nem mesmo quando são motivo de graça, ou desgraça.
Sol brilhando no céu de brigadeiro. Ar fresco. Feriado. Cabeça limpa, corpo desperto. A vida em ordem, o coração em paz. Manhã ideal para se ler a "New Yorker". Não fazia sol, o céu estava carregado, o ar poluído, a cidade rugindo. Cabeça cheia de preocupações, corpo cansado. Desordem natural da vida, coração aos sobressaltos. Foi bom ler a revista. Qualquer manhã, de qualquer dia, é uma boa manhã para se ler essa revista, com seus ideais de civilidade e cultura, e sua confiança renovada na comédia das palavras e dos homens.



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