|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
A Comédia Americana
ARTHUR NESTROVSKI
Colunista da Folha
Existem manhãs assim. Céu
azul, sol brilhando, ar limpo, cabeça limpa, coração tranquilo e
um bom humor gratuito como o
sol e o céu. São manhãs perfeitas
para se ler a "New Yorker". Os
ideais de civilidade e cordialidade,
de graça, espanto e irreverência,
de responsabilidade e reverência
também, conforme o caso, se harmonizam com a manhã ideal, que
é só um cenário da leitura.
Os 3.875 números, publicados
ao longo dos últimos 75 anos, deveriam ser o bastante para mostrar que uma revista assim pode
ser bem sucedida, até onde menos
se espera: neste mundo. Mas não
há outra igual, e ninguém consegue achar outra mistura tão particular de interesses e humores, e
um estilo tão adequadamente variado para tratar de assuntos tão
variadamente adequados, e até
inadequados.
Mesmo a seção menos nobre, a
simples programação de espetáculos da cidade, não tem nada de
simples. Nos pequenos comentários sobre filmes, balés, ou concertos, não menos do que nas resenhas e ensaios, a "New Yorker"
já canta com voz própria, afinada
e afiada. Uma certa visão cômica
tinge a vida de encanto e absurdo.
Dante chamava sua comédia de
"divina"; Balzac, de "humana".
Guardadas as proporções, temos
agora uma espécie de "Comédia
Americana".
É uma revista para ser lida, coisa
mais rara do que se imagina. As
revistas semanais, no mundo inteiro, tendem progressivamente à
informação e ao serviço, quando
muito a um passatempo leve; não
à leitura. O prazer da leitura é de
outra ordem. Mas ninguém esquece que está lendo a "New Yorker" ou só quando transportado
pela própria leitura. Conseguir essa unidade de tom, que não é exatamente uma questão de estilo,
mas de pulso e de olho, é uma façanha que se repete a cada sete
dias, e cada vez é uma façanha.
Isso vale desde a seção inicial, de
casos da cidade ("Talk of the
Town"), a mais lida da revista.
Vale também para reportagens
políticas e sociológicas, outra área
de excelência. Ensaios como os de
A. J. Liebling sobre a Segunda
Guerra, ou de Joseph Mitchel sobre um poeta-vagabundo em
Greenwich Village tornaram-se
clássicos da prosa americana.
Mais recentemente, reportagens
de autores como Philip Gourevitch, Michael Ignatieff e Timothy
Garton Ash mantém vivo o quociente de indignação da revista. A
"New Yorker" é a representante
mais notória da razão liberal americana, fundada em princípios democráticos, sustentando o pensamento à esquerda e à direita (mais
habitualmente à esquerda).
Mas não se disputa que as páginas mais nobres dessa revista tão
nobre ficam mesmo por conta da
literatura. Sua lista de colaboradores é uma humilhação para
qualquer outra revista e uma alegria para qualquer leitor. Foi ali
que Nabokov publicou muitos
contos pela primeira vez. John
Updike escreve regularmente na
revista há 40 anos. Outros americanos: Saul Bellow, Philip Roth,
James Baldwin, Gore Vidal, Don
DeLillo. De fora: García Marquez,
Italo Calvino, Martin Amis, V. S.
Naipaul. Nenhuma explicação, ou
chamada: os nomes dos autores
estão ali, embaixo do título, como
se fosse a coisa mais natural. Uma
semana depois de Günter Grass
receber o Nobel, no ano passado,
a "New Yorker" publicou um
conto de sua autoria. Devia estar
na gaveta, entre tantos outros.
E os poemas? Espalhados ao
longo de cada número, exibem o
que há de mais relevante na poesia do momento: Joseph Brodsky,
John Ashbery, Elisabeth Bishop,
Jorge Luis Borges. Nenhuma outra publicação distribui literatura
dessa qualidade, para quem quer
simplesmente saber o que está
passando no cinema.
Todos esses textos fazem a revista ser mais do que é; nalguma
medida a revista faz deles, também, uma outra literatura. São
autores da "New Yorker", a única
revista com dignidade e cenário
apropriados para publicar autores dignos de saírem na "New
Yorker".
E os desenhos? E os cartuns? E
as fotos? Vale, vale, vale. Não existe revista mais bem impressa, que
é o mínimo (ou o máximo?) que
se pode fazer quando se publica
desenhos de Saul Steinberger, capas de Art Spiegelman, fotos de
Richard Avedon. O contexto da
revista traduz tudo para certo horizonte refinado de humanidade,
uma compreensão mundana das
coisas que não se rebaixa às mundanidades, mas não castiga as superfícies, nem mesmo quando
são motivo de graça, ou desgraça.
Sol brilhando no céu de brigadeiro. Ar fresco. Feriado. Cabeça
limpa, corpo desperto. A vida em
ordem, o coração em paz. Manhã
ideal para se ler a "New Yorker".
Não fazia sol, o céu estava carregado, o ar poluído, a cidade rugindo. Cabeça cheia de preocupações, corpo cansado. Desordem
natural da vida, coração aos sobressaltos. Foi bom ler a revista.
Qualquer manhã, de qualquer
dia, é uma boa manhã para se ler
essa revista, com seus ideais de civilidade e cultura, e sua confiança
renovada na comédia das palavras e dos homens.
Texto Anterior: Festa terá letras e imagens Próximo Texto: Relâmpagos - João Gilberto Noll: Folia no limbo Índice
|