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MÚSICA
MEMÓRIA
Paulista de Taubaté, que morreu anteontem, foi a mãe do rock no Brasil
A emancipação feminina no curso da MPB, de Celly a Kelly
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Malvada, a terça gorda do
Carnaval de 2003 levou embora a mãe do rock brasileiro,
Celly Campello, aos 60 anos. Aos
ouvidos de hoje a afirmação pode
parecer exagerada -mas não é.
No biênio 1958-59, o Brasil passava por profundo surto modernizador, e na música popular dois artistas personalizavam tais
transformações. O finíssimo João
Gilberto era o pai da modernidade. A adolescente Celly Campello
era sua jovem mãezinha.
A modernidade de João era a
bossa nova, movimento quase feminino de suavização e americanização do samba. A modernidade de Celly era o rock'n'roll, levante quase totalmente masculino de sexualização e americanização da música jovem brasileira.
Como perfeita inauguradora,
Celly abria caminhos que ela própria nem supunha que o pop-rock nacional tomaria. Era recatada, um broto que ficava em casa
sem namorar porque precisava
estudar. Celly fazia sucesso rogando um namorado ao "estúpido"
cupido, tomando banho de lua,
atando lacinhos cor-de-rosa, passeando com um índio sabido.
Quase sempre bem-comportada, ainda assim estimulava arrepios velados, ao contar/cantar que
viajava no túnel do amor. Tal roquinho podia manter a aura pudica dos parques de diversão, mas
abriu trilha para que meia década
depois Wanderléa pusesse as pernocas para fora e Roberto e Erasmo Carlos, um ano mais velhos
que Celly, parecessem irmãos caçulas em pleno gozo dos hormônios sexuais que ela reprimira.
Precursora da sociedade organizada de consumo de massas, já
em 1960 Celly virou boneca de loja
de brinquedo, "a bonequinha que
canta". O fetiche tinha lá seu parentesco longínquo com o que
hoje provoca, de forma escancarada, a dominatrix adolescente
Kelly Key. Era muita audácia para
uma mocinha interiorana de
1960, não podia durar demais.
Ícone de um Brasil pré-feminista, Celly seguiu a rota admissível
para as moças de família da época, à qual ela não queria ou não
podia escapar: renunciou à carreira de estrela do rock para se casar
e constituir arrimo de família patriarcal em Campinas.
Enquanto fazia isso, ganhou
mundão a cota masculina da classe de 1942, em que ela nascera:
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Jorge Ben, Tim
Maia, Paulinho da Viola...
A agora mãe de família ensaiou
uma volta em 68 e outra em 76,
quando fazia sucesso na Globo a
novela "Estúpido Cupido", obviamente inspirada na Cinderela
Celly Campello. Foram fósforos
riscados e logo carbonizados.
Na maior parte do tempo, Celly
seguiu sua sina de mulher respeitável. Enquanto isso, Wanderléa
fazia papel parecido diante do público, encarnando sempre a pobre
moça abandonada por rapazotes
cruéis. E Elis Regina (que começara em 61, imitando ora Angela
Maria, ora Celly Campello) masculinizava a bossa nova e começava a encarnar a mulher do futuro,
emancipada e participante.
Celly ficou de banda, assistindo
de longe à evolução solta da linhagem feminina de rock e pop que
inaugurara. Na passarela que era
dela, desfilaram sucessivamente
mulheres arretadas como Wanderléa, Rita Lee, Gal Costa (mas só
na fase tropicalista), Baby Consuelo, Maria Alcina, Angela Ro
Ro, Marina Lima, Paula Toller,
Fernanda Abreu, Cássia Eller,
Fernanda Takai... e Kelly Key.
Sandy? Não, essa parece ainda viver em 1959.
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