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São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2003

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MÚSICA

MEMÓRIA

Paulista de Taubaté, que morreu anteontem, foi a mãe do rock no Brasil

A emancipação feminina no curso da MPB, de Celly a Kelly

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Malvada, a terça gorda do Carnaval de 2003 levou embora a mãe do rock brasileiro, Celly Campello, aos 60 anos. Aos ouvidos de hoje a afirmação pode parecer exagerada -mas não é.
No biênio 1958-59, o Brasil passava por profundo surto modernizador, e na música popular dois artistas personalizavam tais transformações. O finíssimo João Gilberto era o pai da modernidade. A adolescente Celly Campello era sua jovem mãezinha.
A modernidade de João era a bossa nova, movimento quase feminino de suavização e americanização do samba. A modernidade de Celly era o rock'n'roll, levante quase totalmente masculino de sexualização e americanização da música jovem brasileira.
Como perfeita inauguradora, Celly abria caminhos que ela própria nem supunha que o pop-rock nacional tomaria. Era recatada, um broto que ficava em casa sem namorar porque precisava estudar. Celly fazia sucesso rogando um namorado ao "estúpido" cupido, tomando banho de lua, atando lacinhos cor-de-rosa, passeando com um índio sabido.
Quase sempre bem-comportada, ainda assim estimulava arrepios velados, ao contar/cantar que viajava no túnel do amor. Tal roquinho podia manter a aura pudica dos parques de diversão, mas abriu trilha para que meia década depois Wanderléa pusesse as pernocas para fora e Roberto e Erasmo Carlos, um ano mais velhos que Celly, parecessem irmãos caçulas em pleno gozo dos hormônios sexuais que ela reprimira.
Precursora da sociedade organizada de consumo de massas, já em 1960 Celly virou boneca de loja de brinquedo, "a bonequinha que canta". O fetiche tinha lá seu parentesco longínquo com o que hoje provoca, de forma escancarada, a dominatrix adolescente Kelly Key. Era muita audácia para uma mocinha interiorana de 1960, não podia durar demais.
Ícone de um Brasil pré-feminista, Celly seguiu a rota admissível para as moças de família da época, à qual ela não queria ou não podia escapar: renunciou à carreira de estrela do rock para se casar e constituir arrimo de família patriarcal em Campinas.
Enquanto fazia isso, ganhou mundão a cota masculina da classe de 1942, em que ela nascera: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Jorge Ben, Tim Maia, Paulinho da Viola...
A agora mãe de família ensaiou uma volta em 68 e outra em 76, quando fazia sucesso na Globo a novela "Estúpido Cupido", obviamente inspirada na Cinderela Celly Campello. Foram fósforos riscados e logo carbonizados.
Na maior parte do tempo, Celly seguiu sua sina de mulher respeitável. Enquanto isso, Wanderléa fazia papel parecido diante do público, encarnando sempre a pobre moça abandonada por rapazotes cruéis. E Elis Regina (que começara em 61, imitando ora Angela Maria, ora Celly Campello) masculinizava a bossa nova e começava a encarnar a mulher do futuro, emancipada e participante.
Celly ficou de banda, assistindo de longe à evolução solta da linhagem feminina de rock e pop que inaugurara. Na passarela que era dela, desfilaram sucessivamente mulheres arretadas como Wanderléa, Rita Lee, Gal Costa (mas só na fase tropicalista), Baby Consuelo, Maria Alcina, Angela Ro Ro, Marina Lima, Paula Toller, Fernanda Abreu, Cássia Eller, Fernanda Takai... e Kelly Key. Sandy? Não, essa parece ainda viver em 1959.


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