São Paulo, sexta, 6 de março de 1998

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Atores salvam "Melhor É Impossível" da pieguice

NINA HORTA
especial para a Folha

Depois que assisti ao filme "Titanic", saí à caça de um filme que não fosse uma megaprodução e agradasse em cheio, provando que nada daquilo tudo era necessário. Poderia ter encontrado isso em "Melhor É Impossível", mas ainda não.
Nova York. Dois vizinhos de andar moram num prédio de tijolinhos escuros no Village.
Um é Melvin Udall (Jack Nicholson), escritor, misantropo, racista, homofóbico, obsessivo compulsivo, com uma língua ferina que machuca de verdade e vale como uma arma pesada de Tarantino. Politicamente incorreto, como está na moda.
Todos nós já sentimos aquela raiva de ranger dentes por burrices que não são as nossas e de imediato nos identificamos com ele, mas o homem é possuído por todas as implicâncias do mundo, o tempo todo.
Já começa o filme jogando o cachorro do vizinho pelo condutor de lixo. O vizinho, Simon (interpretado pelo ator Greg Kinnear), é um pintor gay e seu marchand de quadros (Cuba Gooding Jr., que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante no ano passado, por "Jerry Maguire") é negro. Convenhamos que para o doentio preconceituoso é um excesso.
Rituais
O que o filme transmite de modo mais para cômico do que doloroso é o sofrimento atroz que o infeliz protagonista deve sentir por causa de seu distúrbio obsessivo compulsivo e dos rituais que é obrigado a cumprir por causa isso.
Uma das manias é tomar café da manhã diariamente no mesmo restaurante, servido pela mesma garçonete e com seus próprios talheres de plástico.
A garçonete escolhida por ele é Carol (Helen Hunt), nova-iorquina do Brooklyn, muito bem caracterizada como uma lutadora da cidade, uma garçonete com "atitude", mãe também obsessiva de um garoto asmático que afasta seus habituais pretendentes.
Nova York está ausente geograficamente, mas inteira presente como opressora e neurotizante.
Protegidos
Cada porta de apartamento que se abre mostra um casulo de privacidade, um escudo bem montado contra a cidade e os perigos lá de fora.
Moram bem. O escritor com suas pilhas de livros, de discos, piano, poltrona em frente à TV, todos os confortos que a cidade proporciona para o "coccooning", o enfiar-se num casulo e suportar ou cevar a solidão.
Até Carol, a garçonete pobre, pode levar uma vida digna, só não tem portas divisórias. Tem que usar cortinas e ficar na fila do pronto-socorro quando o filho adoece. De resto...
O pintor mora num belo estúdio e por cair no pecado de trazer para dentro de casa um modelo desconhecido é assaltado.
Como precisa ser hospitalizado, seu cachorro é impingido a Melvin. É então que começa a humanização do patético escritor e também que o filme se salva da pieguice pelos atores. Fossem eles outros e o filme poderia mudar o nome para "Por Amor", como a novela das oito.
Redenção
O gay, o obsessivo e a garçonete partem para uma metafórica viagem de redenção. É por amor que Melvin vai se livrar de suas doenças e se empenhar em ajudar vizinho e garçonete.
É por gratidão que a garçonete reaprende a viver e amar, e é pelo apoio dos novos amigos que o pintor redescobre a arte e a alegria de viver.
Tão bons os atores que os achei até demais, se é que me entendem, "as good as it gets", com a técnica meio exposta surgindo de quando em quando na tensão exata do queixo, na careta mais apropriada para o exato momento. Vai-se um pouco da espontaneidade.
Enfim, é por amor que a cidade também se humaniza, com Melvin passeando com o cachorro numa tarde luminosa. E é por amor que a padaria se abre de madrugada com pães quentes para os namorados confortáveis, confiantes no futuro, que a nós parece incerto, de mãos dadas e em chinelos.



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