São Paulo, sexta, 6 de março de 1998

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TELEVISÃO
Série francesa busca a essência do Brasil

Divulgação
O jornalista Ives Billon filma uma apresentação de frevo de rua, realizada em Recife (Pernambuco)


CARLOS CALADO
especial para a Folha

Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e São Paulo. Manifestações musicais típicas dessas cidades, como o pagode, o samba-de-roda, o frevo, o reggae ou o hip hop formam um retrato da "alma brasileira".
Essa é a tese central de "Samba: Brasil Musical" (título provisório), série de cinco documentários que estão sendo realizados para a TV francesa. O parisiense Ives Billon assina a direção e a produção.
"No fundo, não estamos interessados somente na música. A espontaneidade das pessoas, ou o modo como elas se comportam nas ruas, mostram como é esse país", diz o diretor, misturando português e espanhol.
O "portunhol" de Billon tem história. Antes de se especializar em documentários musicais (um de seus últimos trabalhos retrata o músico alagoano Hermeto Pascoal), Billon chegou a passar quatro anos no Brasil, durante a década de 70, filmando a construção da megalômana rodovia Transamazônica.
"Esse tipo de enfoque sempre me interessou na música de todo o mundo. Você tem um retrato da alma de cada sociedade por meio da música", emenda Dominique Dreifus, responsável pela pesquisa e pré-produção da série.
"Você percebe claramente o que é São Paulo ao olhar para o hip hop, assim como pode ver exatamente como é o povo carioca por meio do samba", exemplifica a jornalista francesa, autora da biografia do "rei do baião" Luiz Gonzaga, publicada dois anos atrás.
As filmagens começaram em dezembro, no Rio de Janeiro, e prosseguiram até anteontem, quando a equipe registrou cenas do show de Gilberto Gil, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo.
Billon retorna hoje a Paris, para começar a editar o material -mais de cem horas gravadas em vídeo digital estéreo. Porém, a equipe ainda volta ao Brasil em junho, para filmar o último episódio da série, durante as festas de São João, em São Luiz do Maranhão.
Reação ao Tchan
Apesar de vir com certa frequência ao país e de acompanhar as novidades da música popular brasileira, Dominique acabou se deparando com algumas surpresas -nem todas positivas.
A pesquisadora festeja o atual renascimento do samba-de-roda, na Bahia. Porém, não deixa de apontar um aspecto bastante incômodo desse fenômeno, representado pelo grupo É o Tchan, da trepidante Carla Perez.
"Eu conhecia a reputação da banda, mas decidimos ser profissionais, mostrando tudo o que existe hoje no gênero. Foi uma grande surpresa descobrir um grupo que estava trazendo novamente à tona o samba-de-roda, uma das tradições mais lindas da música de Salvador", diz.
O lado negativo, segundo a jornalista, não está propriamente na música do grupo, mas sim nos requebros apelativos da dança da garrafa e similares.
"Meu feminismo ficou meio abalado com esse tipo de dança. Tantos anos de luta das mulheres para chegar a isso? Mas eu sei que as modas passam e acho positivo que essa raiz musical da Bahia esteja voltando", diz.
Outro aspecto problemático do ambiente musical baiano, na opinião da jornalista, é a comercialização excessiva, patrocinada inclusive pelo governo.
"O dinheiro parece ter tomado conta de quase tudo. É o caso do Pelourinho, que virou uma espécie de gueto chique, cheio de turistas. Onde está a música no resto da cidade? Você vai a outros lugares e não consegue encontrar quase nada", reclama.
Uma exceção, lembra Billon, é o Bagunçaços, grupo da periferia de Salvador que fabrica seus instrumentos com sucata. O mais curioso deles é a descarga, feita com recipientes de PVC usados em vasos sanitários.
Rap e repente
Já em relação a SP, os dois franceses ainda estão tentando responder a uma questão surgida depois de conhecerem alguns grupos de rap e hip hop, como os Racionais MC's e Thaíde & DJ Hum.
"A pergunta que a gente se faz é por que a juventude paulista gosta tanto de hip hop e rap, mas ignora a capoeira e o repente, que são as vertentes brasileiras dessas mesmas manifestações que se desenvolveram nos EUA", observa Dominique.
Se ficaram impressionados com a violência das platéias durante os shows de rap que acompanharam em São Paulo, por outro lado os dois franceses notaram uma preocupação comum não só entre os rappers, mas também entre muitos artistas das cidades em que estiveram filmando.
"Quase todos eles transmitem um recado educativo, seja contra as drogas e a violência ou recomendando o uso da camisinha. Se você tirar as melodias e os ritmos das músicas, o discurso que resta é praticamente o mesmo", compara a pesquisadora.
No entanto, para ela, a maior surpresa foi mesmo rever o Carnaval de Recife, cidade em que passou sua infância, dos 2 aos 13 anos de idade, antes de voltar a morar definitivamente na Europa.
"As coisas do tempo de criança sempre nos parecem melhores, mas eu encontrei um Carnaval lindo, muito mais bonito do que era na minha infância", reconhece a jornalista francesa.
"Pelo menos no Recife antigo e em Olinda, ainda existe um Carnaval autenticamente pernambucano, com todas as tradições: os maracatus de baque virado e baque solto, os bois, os blocos. Você vê crianças e velhinhos dançando frevo. É belíssimo."
Assim que terminar seu trabalho na série, Dominique deve voltar ao trabalho de escritora. Retoma a pesquisa e as entrevistas para uma nova biografia. Dessa vez o focalizado será o violonista e compositor Baden Powell, figura essencial na MPB dos anos 60.



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