São Paulo, Sábado, 06 de Março de 1999
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"Trilogia Suja" é Cuba que Cuba quer esconder

France Presse
Cubano transporta porco em sua bicicleta, a caminho da cidade de Havana, Cuba, cenário de "Trilogia Suja de Havana", de Pedro Juan Gutierrez


CYNARA MENEZES
da Reportagem Local

O escritor Pedro Juan Gutiérrez, 49, é um caso peculiar na literatura cubana. Ao contrário de nomes como Cabrera Infante e Zoé Valdés, decidiu ficar em Havana e, em lugar de fazer um retrato de longe, quis mostrar Cuba vista a partir de baixo.
Os personagens de seu livro ""Trilogia Suja de Havana" (que será lançado aqui pela Companhia das Letras), saudado pela crítica em língua espanhola, são tudo que o regime de Fidel quis esconder: mendigos, prostitutas, gigolôs, contrabandistas e homossexuais.
Sem interesse em misturar literatura com política, centrou muito mais seu livro em drogas, rum e salsa do que em anticastrismo. Mas é tal o cotidiano de Cuba para os cubanos que as estocadas indiretas ao regime saltam aos olhos. Tanto é assim que, embora publicado na Espanha e na Itália, o livro ainda não chegou à ilha de Fidel.
Quase tudo é real e autobiográfico -inclusive a história do ataque a um cavalo morto por negros famintos (veja trecho abaixo) ou sua própria experiência como gigolô, catador de latas e vendedor de comida clandestina.
O escritor conta tudo em relatos curtos e duros que a muitos lembra Charles Bukowski, mas que ele define no livro, pela boca de seu alter ego homônimo, como ""remover a merda", enquanto pratica o amor livre com meia Havana.
Leia a seguir trechos da entrevista que o autor deu à Folha, por telefone, em que conta como é viver e escrever na Cuba de hoje.

Folha - Por que seu livro não foi publicado em Cuba?
Pedro Juan Gutiérrez -
Não sei, o livro esteve em uma editora aqui por mais de um ano e me devolveram. Não quiseram publicar.
Folha - O sr. já consegue viver da literatura?
Gutiérrez -
Não, eu pinto, vendo algum quadro quando posso e escrevo artigos para alguns jornais da Espanha e da Argentina. Os livros não dão dinheiro suficiente.
Folha - Ainda vende latas?
Gutiérrez -
Não, tanto assim não. Essa etapa já passou. Bom, continua sendo duro.
Folha - ""Hay que endurecer" para viver em Cuba hoje?
Gutiérrez -
Sim. A vida é como uma briga de galos, e acho que não só em Cuba. Se você abaixa a cabeça, sempre há outro galo que te bica e acaba contigo.
Folha - Mas sem perder a ternura, como dizia o Che, embora o sr. não seja revolucionário?
Gutiérrez -
Creio que sou muito mais revolucionário do que outros que se puseram essa etiqueta e na realidade se converteram em reacionários, burgueses de direita. Acho que toda a minha literatura faz uma clara opção pelos pobres. Mas não a partir de um ponto de vista paternalista, longe deles, olhando-os à distância, mas de dentro, entre a gente que mais sofre. Desse ponto de vista sou muitíssimo mais revolucionário e de esquerda, porque não tenho nada a ver com a direita. Minha opção é pela gente mais humilde, mais simples. Talvez por isso continue vivendo em Havana. Estive três meses na Europa, tive possibilidades de ficar lá, mas minha opção foi regressar a Cuba, arriscar-me ao que seja, e seguir escrevendo desde minha casa.
Folha - O que o distancia muito dos escritores cubanos que deixaram o país, não?
Gutiérrez -
O artista cubano, quando toma essa opção, é muito definitivo. Não poderá mais regressar ao país, queira ou não queira. E esse distanciamento os esteriliza muito como criadores. Chega um momento em que se começa a viver no passado. Se saiu em 80, já são 19 anos de defasagem. E você continua pensando naquela Cuba dos anos 80. Mas não os critico em nada, os entendo perfeitamente, às vezes não há opção.
Folha - O sr. gosta de viver aí?
Gutiérrez -
Adoro, me apaixona. Sou um cubano convicto. Me sinto muito bem aqui. Tenho três filhos, minha mãe que está muito velha, minha mulher, minha casinha. Vivo em frente ao mar, agora mesmo vejo pela janela um sol lindo lá fora, o Caribe, os barcos, os pombos. A Europa me parece um tanto neurotizante, tanto frio, as pessoas se comunicam pouco.
Folha - A publicação do livro lhe criou problemas?
Gutiérrez -
Até agora não. Continuo sendo membro da União Nacional de Escritores e Artistas.
Folha - Todas as histórias do livro são reais?
Gutiérrez -
Há uma elaboração literária, mas eu praticamente não invento nada. E são em grande medida autobiográficas.
Folha - Ou seja, o sr. fez sexo com metade das mulheres de Cuba?
Gutiérrez -
Ahã. (Risos) Bom, não. Não vou responder.
Folha - Há liberdade sexual?
Gutiérrez -
O sexo está livre.
Folha - O homossexualismo também?
Gutiérrez -
Houve uma etapa em que se reprimia muito os homossexuais, agora não. Há muito mais abertura. Pode-se ver inclusive alguns travestis pela rua, não só em Havana como em algumas cidades do interior. Alguns são bonitos.
Folha - E a maconha, é proibida?
Gutiérrez -
A maconha sempre teve uma tradição aqui. Não em todos os meios. A cultura de Cuba sempre foi mais a do tabaco, do álcool e do café. Em certos meios, sim, há pessoas que fumam, mas a ""mariguana" está proibidíssima.
Folha - A religião é livre?
Gutiérrez -
A ""santeria" (correspondente ao candomblé) está muito presente na vida cotidiana aqui, sobretudo entre os negros. Foi muito perseguida pela coroa espanhola, na república voltou a ser malvista. Depois foi proibida, como todas as religiões em Cuba, até mesmo a ioga. Há alguns anos, saiu uma resolução de que havia uma liberdade de crenças e, da noite para o dia, as pessoas saíram com seus colares no pescoço e tiraram os santos de seus esconderijos.
Folha - O sr. não cita Fidel Castro nenhuma vez no livro. Por quê?
Gutiérrez -
Porque não me interessa fazer política nem misturar política com literatura.
Folha - O que o sr. pensa dele?
Gutiérrez -
Prefiro reservar minha opinião.
Folha - E o que acha que pode ser Cuba sem Fidel?
Gutiérrez -
É uma incógnita. Imagine que Cuba tem 11 milhões de habitantes na ilha e 2,5 milhões no exterior, 1 milhão deles na Flórida. Desse 1 milhão boa parte tem muito poder econômico, é uma gente de direita muito reacionária, violenta e rancorosa. Aqui também há uma dissidência interna. Com o Partido Comunista que está no poder, são três forças tremendas, e cada uma diz que vai triunfar.
Folha - Quando o sr. fala que Cuba tem que mudar para o ""outro", está falando de capitalismo?
Gutiérrez -
Não exatamente, mas é evidente que é preciso mudar. A utopia desmoronou.

Livro: Trilogía Sucia de La Habana
Autor: Pedro Juan Gutiérrez Lançamento: Anagrama
Quanto: cerca de US$ 33 (360 págs.) pelo site www.crisol.es



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