São Paulo, Sábado, 06 de Março de 1999
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Os homens e suas cidades

ALBERTO DINES

Colunista da Folha

As Águas de Março vieram negras. O dilúvio que castigou a maior cidade brasileira, segunda-feira passada, não foi um acidente meteorológico isolado. É o marco de uma história de desgoverno, crescimento desenfreado e descaso. A Paulicéia, orgulhosa das suas dimensões e riquezas, afinal encarou de frente seu desvario e imprevidência. Chegou ao limite, impossível ignorá-lo.
E, para provar a íntima conjunção entre a casualidade -o acidente- e a causalidade -o fato deflagrador-, naquele mesmo dia o escândalo das propinas nas administrações regionais do município chegava ao seu ponto culminante. Dois dias depois seria finalmente aprovada na Câmara dos Vereadores a constituição de uma CPI para investigar o gigantesco esquema de corrupção e violência instalado na administração municipal.
Os fenômenos ocorreram em esferas diferentes, mas é impossível dissociá-los. A nova imoralidade que envolve a Prefeitura de São Paulo não se relaciona diretamente com as obras contra enchentes. Mas não pode ficar circunscrita como foco singular de improbidade. Ou novo espasmo do "rouba mas faz".
As assombrosas revelações mostram uma estrutura organicamente mafiosa, bandidagem institucionalizada, entranhada no Legislativo e Executivo com o objetivo de converter em benefício próprio aquilo que deveria ser dirigido ao bem comum.
Estamos diante do gangsterismo em estado puro. Sob a égide oficial. E por mais que o prefeito Celso Pitta esteja esperneando para se desvencilhar da vergonhosa situação em que está envolvido, não se pode ignorar que ele é herdeiro e sucessor do prefeito anterior, Paulo Maluf, presidente do PPB. Ao qual pertencem e no qual militam os principais suspeitos dentro da máquina de intimidação e da caixinha coletora de propinas. Se o prefeito Pitta desconhecia o que se passava na gestão anterior, em que foi secretário das Finanças, e o que se passa nestes quase três anos de prefeitura, então é mais incompetente do que parece.
Maluf, seu patrono, chegou quarta-feira, de mansinho, quase clandestino. Desta vez falhou o seu decantado timing -o périplo de quase quatro meses no circuito Elizabeth Arden acabou antes do que deveria. E começou inopinadamente quando seu nome e de familiares incorporaram-se à falsificação do papelucho Cayman e à chantagem subsequente, levando-o a antecipar as férias de verão.
A cada dia que passa fica mais difícil para Maluf controlar a situação, como gosta. Embora ainda consiga manipular certos nichos da mídia. Agora está ficando mais difícil, tamanho é o novelo de trapalhadas e o tipo de jogo, digamos, brumoso em que se envolve com tanto afinco. Sempre acompanhado de parceiros afeitos aos mesmos padrões. O encadeamento dos diferentes lances deste jogo criou tal dinâmica que hoje seu nome e legenda dificilmente podem dissociar-se das mais vexaminosas situações em qualquer recanto do país.
"Antigamente a cidade era o mundo, hoje o mundo é uma cidade." Essa a constatação de Lewis Mumford (1895-1990), filósofo e utopista americano, no seu clássico "A Cidade na História" (editora Itatiaia, dois volumes, 1965). O axioma reflete a transformação do antigo núcleo administrativo na malha expandida de megalópolis da urbanização moderna.
A cidade é a expressão mais sofisticada de organização política. É muito mais do que um aglomerado de casas, ruas, serviços, pessoas. Da mesma raiz latina (civitas, civitatis) saíram civil, civilidade, cidadania, a noção de direitos, Estado, pátria. Urbe, seu quase sinônimo (de urbs, urbis, cidade física, em oposição a rus, ruris, campo, rústico), deu urbanidade, cortesia, afabilidade. Decência e honradez. A pólis grega, cidade-estado, é o berço da democracia.
Supõe-se, portanto, que a cidade, de qualquer dimensão, com as suas regras de imperiosa convivência, seja a matriz da solidariedade, do respeito humano e celeiro de líderes capazes de harmonizar os melhores impulsos de seus habitantes. Exemplo disso é o presidente de Portugal, Jorge Sampaio, há uma década atrás, prefeito (presidente da Câmara) de Lisboa.
Os 15 anos da ditadura Vargas (1930-1945) podem ter sido os responsáveis pela degradação do nosso municipalismo. No Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, durante a redemocratização, a Câmara dos Vereadores foi alcunhada de "Gaiola de Ouro" tantas as mamatas (o prefeito era indicado pelo presidente). Os 21 anos de regime militar (1964-1985) cercearam o processo de formação de lideranças, acionando algumas carreiras que, em tempos normais, não deveriam prosperar.
Uma delas foi a de Paulo Maluf. Essa noção de que no nível local vale tudo acaba contaminando todo o processo político. O caudilhismo urbano é uma das piores deformações do "espírito das cidades", corrompe a confiança, interrompe o espírito de comuna. O poder municipal é o que está mais próximo do cidadão, nivela representantes e representados. Facilita cobranças. Nossos partidos fecham os olhos à escória que lhe bate às portas para postular uma candidatura. E o eleitor, quando escolhe vereadores, em geral abranda dramaticamente os seus padrões de exigência.
A cidade mais rica, melhor aparelhada e mais culta do país, apesar das brutais diferenças, não pode ser administrada dentro de paradigmas de terra de ninguém. Se nesta mesma cidade prosperou um grupo de defensores do povo -o Ministério Público- capaz de conduzir com coragem e competência a operação saneadora contra a máfia dos fiscais e seus parceiros no legislativo, devem existir condições morais e material humano para produzir administradores eficazes e honrados.
Os problemas de São Paulo podem ser solucionados, inclusive o das enchentes. Dependem de recursos materiais, é verdade. Mas dependem, sobretudo, do espírito participativo da população. Existe vocação para mobilizar-se e atender às empreitadas coletivas. O sistema de rodízio de carros implantado a partir de 1996 é a melhor demonstração de que o paulistano é muito bem dotado nesse sentido. Mas o sucesso das convocações é diretamente proporcional à credibilidade dos convocadores.
Paulo Maluf, seus herdeiros e entourage ficaram desqualificados para emitir qualquer apelo participativo, seja no tocante à fiscalização dos fiscais, seja para enfrentar os imponderáveis da Natureza.
Depois da chuva apareceu o imenso mar de lama.


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