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Os homens e suas cidades
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
As Águas de Março vieram
negras. O dilúvio que castigou
a maior cidade brasileira, segunda-feira passada, não foi
um acidente meteorológico isolado. É o marco de uma história de desgoverno, crescimento
desenfreado e descaso. A Paulicéia, orgulhosa das suas dimensões e riquezas, afinal encarou de frente seu desvario e
imprevidência. Chegou ao limite, impossível ignorá-lo.
E, para provar a íntima conjunção entre a casualidade -o
acidente- e a causalidade -o
fato deflagrador-, naquele
mesmo dia o escândalo das
propinas nas administrações
regionais do município chegava ao seu ponto culminante.
Dois dias depois seria finalmente aprovada na Câmara
dos Vereadores a constituição
de uma CPI para investigar o
gigantesco esquema de corrupção e violência instalado na
administração municipal.
Os fenômenos ocorreram em
esferas diferentes, mas é impossível dissociá-los. A nova imoralidade que envolve a Prefeitura de São Paulo não se relaciona diretamente com as
obras contra enchentes. Mas
não pode ficar circunscrita como foco singular de improbidade. Ou novo espasmo do
"rouba mas faz".
As assombrosas revelações
mostram uma estrutura organicamente mafiosa, bandidagem institucionalizada, entranhada no Legislativo e Executivo com o objetivo de converter em benefício próprio aquilo
que deveria ser dirigido ao bem
comum.
Estamos diante do gangsterismo em estado puro. Sob a
égide oficial. E por mais que o
prefeito Celso Pitta esteja esperneando para se desvencilhar da vergonhosa situação
em que está envolvido, não se
pode ignorar que ele é herdeiro
e sucessor do prefeito anterior,
Paulo Maluf, presidente do
PPB. Ao qual pertencem e no
qual militam os principais suspeitos dentro da máquina de
intimidação e da caixinha coletora de propinas. Se o prefeito
Pitta desconhecia o que se passava na gestão anterior, em
que foi secretário das Finanças,
e o que se passa nestes quase
três anos de prefeitura, então é
mais incompetente do que parece.
Maluf, seu patrono, chegou
quarta-feira, de mansinho,
quase clandestino. Desta vez
falhou o seu decantado timing
-o périplo de quase quatro
meses no circuito Elizabeth Arden acabou antes do que deveria. E começou inopinadamente quando seu nome e de familiares incorporaram-se à falsificação do papelucho Cayman
e à chantagem subsequente, levando-o a antecipar as férias
de verão.
A cada dia que passa fica
mais difícil para Maluf controlar a situação, como gosta. Embora ainda consiga manipular
certos nichos da mídia. Agora
está ficando mais difícil, tamanho é o novelo de trapalhadas e
o tipo de jogo, digamos, brumoso em que se envolve com
tanto afinco. Sempre acompanhado de parceiros afeitos aos
mesmos padrões. O encadeamento dos diferentes lances
deste jogo criou tal dinâmica
que hoje seu nome e legenda dificilmente podem dissociar-se
das mais vexaminosas situações em qualquer recanto do
país.
"Antigamente a cidade era o
mundo, hoje o mundo é uma
cidade." Essa a constatação de
Lewis Mumford (1895-1990), filósofo e utopista americano, no
seu clássico "A Cidade na História" (editora Itatiaia, dois
volumes, 1965). O axioma reflete a transformação do antigo
núcleo administrativo na malha expandida de megalópolis
da urbanização moderna.
A cidade é a expressão mais
sofisticada de organização política. É muito mais do que um
aglomerado de casas, ruas, serviços, pessoas. Da mesma raiz
latina (civitas, civitatis) saíram civil, civilidade, cidadania, a noção de direitos, Estado, pátria. Urbe, seu quase sinônimo (de urbs, urbis, cidade
física, em oposição a rus, ruris,
campo, rústico), deu urbanidade, cortesia, afabilidade. Decência e honradez. A pólis grega, cidade-estado, é o berço da
democracia.
Supõe-se, portanto, que a cidade, de qualquer dimensão,
com as suas regras de imperiosa convivência, seja a matriz
da solidariedade, do respeito
humano e celeiro de líderes capazes de harmonizar os melhores impulsos de seus habitantes. Exemplo disso é o presidente de Portugal, Jorge Sampaio,
há uma década atrás, prefeito
(presidente da Câmara) de Lisboa.
Os 15 anos da ditadura Vargas (1930-1945) podem ter sido
os responsáveis pela degradação do nosso municipalismo.
No Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, durante a redemocratização, a Câmara dos
Vereadores foi alcunhada de
"Gaiola de Ouro" tantas as
mamatas (o prefeito era indicado pelo presidente). Os 21
anos de regime militar (1964-1985) cercearam o processo de
formação de lideranças, acionando algumas carreiras que,
em tempos normais, não deveriam prosperar.
Uma delas foi a de Paulo Maluf. Essa noção de que no nível
local vale tudo acaba contaminando todo o processo político.
O caudilhismo urbano é uma
das piores deformações do "espírito das cidades", corrompe a
confiança, interrompe o espírito de comuna. O poder municipal é o que está mais próximo
do cidadão, nivela representantes e representados. Facilita
cobranças. Nossos partidos fecham os olhos à escória que lhe
bate às portas para postular
uma candidatura. E o eleitor,
quando escolhe vereadores, em
geral abranda dramaticamente os seus padrões de exigência.
A cidade mais rica, melhor
aparelhada e mais culta do
país, apesar das brutais diferenças, não pode ser administrada dentro de paradigmas de
terra de ninguém. Se nesta
mesma cidade prosperou um
grupo de defensores do povo
-o Ministério Público- capaz de conduzir com coragem e
competência a operação saneadora contra a máfia dos fiscais
e seus parceiros no legislativo,
devem existir condições morais
e material humano para produzir administradores eficazes
e honrados.
Os problemas de São Paulo
podem ser solucionados, inclusive o das enchentes. Dependem de recursos materiais, é
verdade. Mas dependem, sobretudo, do espírito participativo da população. Existe vocação para mobilizar-se e atender às empreitadas coletivas. O
sistema de rodízio de carros
implantado a partir de 1996 é a
melhor demonstração de que o
paulistano é muito bem dotado
nesse sentido. Mas o sucesso
das convocações é diretamente
proporcional à credibilidade
dos convocadores.
Paulo Maluf, seus herdeiros e
entourage ficaram desqualificados para emitir qualquer
apelo participativo, seja no tocante à fiscalização dos fiscais,
seja para enfrentar os imponderáveis da Natureza.
Depois da chuva apareceu o
imenso mar de lama.
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