São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2000


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TELEVISÃO
Jovens professores de filosofia estão ilustrando suas aulas com lições extraídas do seriado americano
"Seinfeld" é tema de ensaios filosóficos

JAMES NESTOR
da "Salon"

O norte-americano médio cresce assistindo quatro horas de televisão por dia. Para as pessoas da casa dos 30 anos cujos pais não "mataram" seus televisores, "Happy Days" fez mais do que Freud quanto às percepções que eles têm sobre famílias.
Assim, seria elitista dizer que Freud merece atenção acadêmica e "Happy Days" não? Sim, de acordo com um punhado de jovens professores de filosofia também filhotes da TV, agora crescidos e se infiltrando nos sagrados corredores da Academia.
Agora, eles estão ilustrando suas aulas de filosofia com lições extraídas de "Seinfeld". A ironia é que os escritores da série eram orientados por dois princípios: nada de abraços e nada de aprendizado.
William Irwin, 29, apaixonado por charutos cubanos e por camisas bufantes, é professor-assistente de filosofia no King's College, na Pensilvânia, e publicou "Seinfeld and Philosophy: A Book About Everything and Nothing" ("Seinfeld e a Filosofia: Um Livro sobre Tudo e Nada"), em outubro de 1999. Essa coleção de ensaios de professores de filosofia mata dois coelhos pós-modernos com uma só cajadada: tanto ocupa a incômoda brecha que existe entre as comédias de televisão e o existencialista Soren Kierkegaard quanto mastiga 2.000 anos de filósofos barbudos para transformá-los em sujeitos contemporâneos, cheios de sacadas curtas em benefício do estudante moderno.
Irwin diz que da mesma maneira que Sócrates queria mobilizar as massas, "Seinfeld" pode explicar coisas às pessoas porque desnuda os seus personagens até que se reduzam a egos narcisistas puros. Por exemplo, o episódio final, "O Bom Samaritano", em que o grupo é acusado de não ajudar uma vítima de roubo de carro, exibe a humanidade sob os seus piores aspectos.
Robert Thompson, professor da Universidade de Syracuse, fundou o Centro de Estudo da Televisão Popular depois de se perguntar "por que pessoas inteligentes assistem a programas estúpidos de TV?". "A última esperança das artes liberais é usar a TV", diz ele. "Por muitos anos, os métodos tradicionais de ensino das humanidades vêm perdendo terreno. A televisão dá aos estudantes algo com que se identificar, um ponto de referência a partir do qual podem ganhar acesso a Kant, Sartre e Heidegger."
Mas isso não quer dizer que um curso chamado "Introdução a Seinfeld" constará dos currículos de filosofia no próximo ano letivo. O estudo de Seinfeld é uma moda nascente, não uma disciplina em flor. O livro surgiu quando Irwin percebeu que ele e seus colegas professores estavam todos se referindo ao programa nas salas de aula. O trabalho é composto de ensaios como "Wittgenstein e Seinfeld sobre o lugar-comum" e "Elaine Benes: Ícone Feminista Ou Mais um Garoto da Turma?".
Ler o livro causa uma sensação parecida com a de um adulto dirigindo um Miata com a capota recolhida, emborcando uma [água mineral" Mountain Dew e acompanhando com gritos em falsete uma das canções de Alanis Morrissette. O livro é engraçado, imprevisível e esquisito. Os ensaístas são todos viciados em Seinfeld que têm os 169 episódios da série em vídeo, organizados por ordem cronológica, e usam gírias só familiares aos iniciados como "Nada de sopa para você!" ou "Eu sou o mestre do meu domínio!".
O texto traça paralelos entre os quatro personagens principais e suas contrapartes filosóficas: quando George decide que todas as decisões que tomou na vida foram erradas, e portanto ele deveria fazer sempre o contrário do que dita seu instinto, um escritor o compara ao paradigma aristotélico dos "muitos". George incorpora as deficiências de muitas pessoas em um único corpo, diz o autor, e assim ilustra as encruzilhadas e os caminhos que não se deve tomar ao longo de uma estrada pessoal.
Às vezes as analogias são absolutamente fúteis, e um dos autores dá uma séria mancada. Em "Kramer e Kierkegaard: Estágios no Percurso da Vida", Irwin escreve: "Pensem no boicote de Kramer ao Kenny Rogers Roasters. Sua motivação não envolve princípios, mas uma questão prática: o brilho do sinal de neon da loja o perturba quando ele tenta dormir. Quando Jerry troca de apartamento com ele, Kramer cede à tentação de Newman e começa a jantar no restaurante". O ponto do artigo é que inicialmente parece que Kramer está flertando com a ética, e que Kierkegaard propôs diversos estágios de existência, mas é um paralelo tolo.
Depois de ler que até mesmo o título da série oferece uma afinidade etimológica para com "O Ser e o Tempo", do filósofo existencialista alemão Martin Heidegger, dá para imaginar que "Seinfeld and Philosophy" seja apenas um truque elaborado, uma maneira de aproveitar uma série de televisão com grande apelo popular para promover as vendas de um livro. Que maneira melhor de promover uma carreira do que fazer barulho e transformar em dissertação as horas gastas em lazer? Como Kenny Kramer, o homem real em quem o personagem de televisão supostamente foi baseado, diz na capa do livro: "Eu pensava só que era um programa engraçado". Ironicamente, Kenny Kramer foi acusado de tentar aproveitar o programa para ganhar dinheiro.


Tradução de Paulo Migliacci


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