São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2001

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Filme "Sacrificio" investiga episódio e assinala traição do ilustre filósofo Régis Debray, que inculpou Bustos

O homem que a história traiu


O líder revolucionário Che Guevara, que foi morto em 1967


Ao romper mais de 30 anos de silêncio, Ciro Bustos, argentino acusado de delatar Che, revolve a luta e aponta falácia histórica

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL


Homem de confiança de Che Guevara para promover a revolução na Argentina, o artista plástico portenho Ciro Bustos, 69, foi capturado na Bolívia, em outubro de 1967, ao lado do filósofo francês Régis Debray, companheiro de guerrilha.
Uma semana depois, a polícia matou Che. Bustos passou para a história como o delator do líder revolucionário. Ele teria apontado o local exato do esconderijo. E Debray saiu do episódio com aura de herói esquerdista. Bustos exilou-se na Suécia. Debray tornou-se conselheiro do presidente François Mitterrand.
"Sacrificio", documentário dos cineastas suecos Erik Gandini, 33, e Tarik Saleh, 29, revira essa versão de ponta-cabeça. Depois de ouvir testemunhas como o homem que capturou Che, general Gary Prado, e de dar voz ao acusado, que até então havia permanecido calado, o filme aponta para uma cilada histórica que teria aviltado um inocente e glorificado um embuste (leia ao lado). De Malmo, na Suécia, onde vive, Ciro Bustos falou à Folha.

Folha - Por que o sr., tendo sido acusado de haver delatado Che, decidiu permanecer calado?
Ciro Bustos -
O mediador entre Che e os revolucionários na Argentina era eu. Era eu quem os havia contatado, quem conhecia seus nomes e endereços. A necessidade de ocultar tudo me fez adotar um papel falso no momento da detenção -o de um estúpido, que estava ali por acaso e que não tinha vinculação com nada. Eu precisava bloquear os contatos e impedir que a polícia tivesse conhecimento do que realmente havia atrás de mim. Não tomei essa atitude para sustentá-la durante um dia ou um mês ou um ano, mas por todo o tempo que fosse necessário.

Folha - Ainda que a versão histórica que passasse a valer então lhe reservasse o papel de traidor?
Bustos -
Sim. Durante a prisão isso era necessário. Nem eu nem Cuba poderíamos falar do que havia por trás de mim. Para poder dizer que eu não era o personagem idiota que acreditavam e em quem jogavam a culpa, mas sim o chefe de uma organização, eu teria de começar a dizer coisas verdadeiras, que colocariam em risco as pessoas. E ninguém foi posto em risco. As pessoas que morreram morreram porque continuaram combatendo em outras organizações. Quando saímos da prisão, tudo ia mal na Argentina. Havia o regresso de Peron, a ascensão da direita peronista, começaram a matar gente e com mais razão tive de permanecer calado.

Folha - Quando o sr. afirma, no documentário, que "tudo é mentira", está se referindo também ao sonho revolucionário? Hoje, o sr. descrê da revolução?
Bustos -
Não. Estou me referindo à toda a manipulação da história feita depois; ao fato de que pessoas, aproveitando-se da necessidade do meu silêncio, construíram sua própria história heróica e brilhante, enquanto jogavam a culpa em mim. Eu me refiro a uma falsa história construída durante 30 anos e da qual participaram todos, inclusive muitos daqueles a quem salvei a vida.

Folha - O comportamento dos ex-companheiros de guerrilha mudou sua idéia sobre a possibilidade de uma real transformação política?
Bustos -
Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A necessidade da revolução, no momento em que Che tentava impulsionar a luta armada na Argentina, de fato existia. Era a única possibilidade de demonstrar, com os fatos, que a velha política havia fracassado. Era preciso mudar as condições de luta. Como hoje isso ainda é necessário. O que mudou no mundo? Nada. Ou melhor, mudou para pior. Há mais miséria, mais povos despossuídos, sem saída, sem futuro e mais milionários exclusivos. Ou seja, a necessidade de mudança social ainda vige. Outras pessoas a farão, por outros meios, talvez. Não estou dizendo que todo o mundo vai retomar a guerrilha como único caminho. Estou dizendo que, tal como estão as coisas, a concentração de riquezas, não há futuro.

Folha - O sr. está dizendo que faria tudo outra vez?
Bustos -
Obviamente, se eu tivesse de volta as condições da minha idade na época.

Folha - Quantos anos o sr. tinha quando ingressou na guerrilha?
Bustos -
Antes da guerrilha fui a Cuba encontrar Che. Vivi lá alguns anos, durante os quais começamos todos os planos para ir à Argentina. Nessa época, eu tinha uns 27, 28 anos.

Folha - Em "Sacrificio", o cubano exilado e atual agente da CIA, Felix Rodriguez, afirma que nunca houve na história um líder revolucionário tão despreparado como Che.
Bustos -
Creio que desse personagem não é preciso falar.

Folha - Mas que espécie de líder era Che?
Bustos -
É muito difícil sintetizá-lo, porque era uma pessoa muito complexa. Resulta pueril dizer em poucas palavras que ele era formidável, um grande sujeito. Isso não quer dizer nada. Abordar a personalidade de Che exige uma longa conversa pessoal. Mas, se você quer uma síntese, não conheci outra pessoa como ele.

Folha - Depois de sua saída da prisão, o sr. retornou a Cuba?
Bustos -
Nunca.

Qual sua avaliação sobre a situação atual de Cuba?
Bustos -
Quero falar apenas do que conheço e vejo pessoalmente.

Folha - O sr. visitou a Argentina nesses últimos 30 anos?
Bustos -
Não pude. Antes de 1984 não era possível retornar à Argentina. Depois, minha situação econômica não me permitia viajar. E agora ficou pior. Hoje sou um aposentado, ou seja, ocupo o posto mais baixo na escala econômica.

Folha - O sr. conseguiu viver na Suécia de sua arte?
Bustos -
Impossível. Sou um pintor ao velho estilo da pintura expressionista, que trabalha com a figura humana. O mercado de arte sueco está voltado para as vanguardas. Não existo como pintor. Trabalhei com outras coisas, como qualquer imigrante.

Folha - O sr. ainda sofre de constantes dores de cabeça?
Bustos -
Os médicos descobriram que tenho pressão alta. Agora, tomo uma pílula diária, e a dor quase desapareceu. Era um problema que não havia sido bem investigado e se prolongou demais.


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