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Filme "Sacrificio" investiga episódio e assinala traição do ilustre filósofo Régis Debray, que inculpou Bustos
O homem que a história traiu
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O líder revolucionário Che Guevara, que foi morto em 1967 |
Ao romper mais de 30 anos de silêncio, Ciro Bustos, argentino acusado de delatar Che, revolve a luta e aponta falácia histórica
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Homem de confiança de Che
Guevara para promover a revolução na Argentina, o artista plástico portenho Ciro Bustos, 69, foi
capturado na Bolívia, em outubro
de 1967, ao lado do filósofo francês Régis Debray, companheiro
de guerrilha.
Uma semana depois, a polícia
matou Che. Bustos passou para a
história como o delator do líder
revolucionário. Ele teria apontado o local exato do esconderijo. E
Debray saiu do episódio com aura
de herói esquerdista. Bustos exilou-se na Suécia. Debray tornou-se conselheiro do presidente
François Mitterrand.
"Sacrificio", documentário dos
cineastas suecos Erik Gandini, 33,
e Tarik Saleh, 29, revira essa versão de ponta-cabeça. Depois de
ouvir testemunhas como o homem que capturou Che, general
Gary Prado, e de dar voz ao acusado, que até então havia permanecido calado, o filme aponta para
uma cilada histórica que teria
aviltado um inocente e glorificado
um embuste (leia ao lado). De
Malmo, na Suécia, onde vive, Ciro
Bustos falou à Folha.
Folha - Por que o sr., tendo sido
acusado de haver delatado Che,
decidiu permanecer calado?
Ciro Bustos - O mediador entre
Che e os revolucionários na Argentina era eu. Era eu quem os havia contatado, quem conhecia
seus nomes e endereços. A necessidade de ocultar tudo me fez adotar um papel falso no momento
da detenção -o de um estúpido,
que estava ali por acaso e que não
tinha vinculação com nada. Eu
precisava bloquear os contatos e
impedir que a polícia tivesse conhecimento do que realmente havia atrás de mim. Não tomei essa
atitude para sustentá-la durante
um dia ou um mês ou um ano,
mas por todo o tempo que fosse
necessário.
Folha - Ainda que a versão histórica que passasse a valer então lhe
reservasse o papel de traidor?
Bustos - Sim. Durante a prisão
isso era necessário. Nem eu nem
Cuba poderíamos falar do que havia por trás de mim. Para poder
dizer que eu não era o personagem idiota que acreditavam e em
quem jogavam a culpa, mas sim o
chefe de uma organização, eu teria de começar a dizer coisas verdadeiras, que colocariam em risco
as pessoas. E ninguém foi posto
em risco. As pessoas que morreram morreram porque continuaram combatendo em outras organizações. Quando saímos da prisão, tudo ia mal na Argentina. Havia o regresso de Peron, a ascensão da direita peronista, começaram a matar gente e com mais razão tive de permanecer calado.
Folha - Quando o sr. afirma, no
documentário, que "tudo é mentira", está se referindo também ao
sonho revolucionário? Hoje, o sr.
descrê da revolução?
Bustos - Não. Estou me referindo à toda a manipulação da história feita depois; ao fato de que pessoas, aproveitando-se da necessidade do meu silêncio, construíram sua própria história heróica e
brilhante, enquanto jogavam a
culpa em mim. Eu me refiro a
uma falsa história construída durante 30 anos e da qual participaram todos, inclusive muitos daqueles a quem salvei a vida.
Folha - O comportamento dos ex-companheiros de guerrilha mudou
sua idéia sobre a possibilidade de
uma real transformação política?
Bustos - Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A necessidade da revolução, no momento em
que Che tentava impulsionar a luta armada na Argentina, de fato
existia. Era a única possibilidade
de demonstrar, com os fatos, que
a velha política havia fracassado.
Era preciso mudar as condições
de luta. Como hoje isso ainda é
necessário. O que mudou no
mundo? Nada. Ou melhor, mudou para pior. Há mais miséria,
mais povos despossuídos, sem
saída, sem futuro e mais milionários exclusivos. Ou seja, a necessidade de mudança social ainda vige. Outras pessoas a farão, por outros meios, talvez. Não estou dizendo que todo o mundo vai retomar a guerrilha como único caminho. Estou dizendo que, tal como
estão as coisas, a concentração de
riquezas, não há futuro.
Folha - O sr. está dizendo que faria tudo outra vez?
Bustos - Obviamente, se eu tivesse de volta as condições da minha
idade na época.
Folha - Quantos anos o sr. tinha
quando ingressou na guerrilha?
Bustos - Antes da guerrilha fui a
Cuba encontrar Che. Vivi lá alguns anos, durante os quais começamos todos os planos para ir
à Argentina. Nessa época, eu tinha uns 27, 28 anos.
Folha - Em "Sacrificio", o cubano
exilado e atual agente da CIA, Felix
Rodriguez, afirma que nunca houve na história um líder revolucionário tão despreparado como Che.
Bustos - Creio que desse personagem não é preciso falar.
Folha - Mas que espécie de líder
era Che?
Bustos - É muito difícil sintetizá-lo, porque era uma pessoa muito
complexa. Resulta pueril dizer em
poucas palavras que ele era formidável, um grande sujeito. Isso não
quer dizer nada. Abordar a personalidade de Che exige uma longa
conversa pessoal. Mas, se você
quer uma síntese, não conheci outra pessoa como ele.
Folha - Depois de sua saída da prisão, o sr. retornou a Cuba?
Bustos - Nunca.
Qual sua avaliação sobre a situação atual de Cuba?
Bustos - Quero falar apenas do
que conheço e vejo pessoalmente.
Folha - O sr. visitou a Argentina
nesses últimos 30 anos?
Bustos - Não pude. Antes de
1984 não era possível retornar à
Argentina. Depois, minha situação econômica não me permitia
viajar. E agora ficou pior. Hoje
sou um aposentado, ou seja, ocupo o posto mais baixo na escala
econômica.
Folha - O sr. conseguiu viver na
Suécia de sua arte?
Bustos - Impossível. Sou um
pintor ao velho estilo da pintura
expressionista, que trabalha com
a figura humana. O mercado de
arte sueco está voltado para as
vanguardas. Não existo como
pintor. Trabalhei com outras coisas, como qualquer imigrante.
Folha - O sr. ainda sofre de constantes dores de cabeça?
Bustos - Os médicos descobriram que tenho pressão alta. Agora, tomo uma pílula diária, e a dor
quase desapareceu. Era um problema que não havia sido bem investigado e se prolongou demais.
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