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CRÍTICA
Obra é rara e justa
TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
D e frente para Régis Debray, um dos intelectuais
(engajados) mais renomados da
cultura francesa, dois jovens documentaristas suecos não hesitam em fazer a mais grave acusação: "Você construiu sua carreira
em cima de uma mentira".
A reação de Debray só não é
mais constrangedora do que a de
seu amigo Pierre Kalfon, historiador responsável por uma das biografias de Che Guevara. Suas explicações são tão relapsas que os
dois cineastas, mal contendo a indignação, já não poderão se contentar em ficar atrás das câmeras.
Kalfon e Debray são os grandes
responsáveis pela miséria de Ciro
Bustos. Foram eles que cravaram
o nome do ex-guerrilheiro no tal
pelourinho da história. Debray,
por má-fé; Kalfon, por parcialidade e preguiça. Desde que foi declarado o Judas desse Cristo da esquerda que é Guevara, Bustos
apartou-se da vida. Auto-exilado
em permanente perambulação
pelas ruas de uma cidade sueca,
ele lembra hoje um personagem
de cinema moderno, um desencantado wenderiano... ou o Pierrot de Godard, depois de ter implodido a própria cabeça.
"A guerrilha nada mais era que
andar", lembra o humilde Bustos
que, apesar de todo o opróbrio,
ainda não deixou de seguir o caminho indicado por Guevara.
Mas o sentido da luta já se perdeu.
Por mais que ainda procure justificar o seu auto-sacrifício, Bustos
sabe perfeitamente que os seus
moinhos são de vento. O suposto
traidor foi traído por todos.
"Sacrificio" é o documentário
dos sonhos de qualquer cineasta.
Partindo de uma hipótese improvável, os seus dois diretores desemaranharam toda uma trama de
erros históricos. Em sua fúria investigativa, tiraram supostos traidores do cadafalso (não apenas
Bustos, mas também Camba, outro guerrilheiro acusado pelo próprio Guevara de traição) e destruíram reputações até então inabaláveis. É um filme justo, porque
repõe a cada um de seus personagens a responsabilidade que lhe é
devida. Doravante Bustos já não
precisará mais carregar o peso
que Debray e Kalfon colocaram,
"oportunamente", sobre as suas
costas. Todo o peso do mundo.
Apesar de ser um desses raros
documentários que de fato reescrevem a história, "Sacrificio" não
recai na pompa vazia e no tom
oficialesco, usual nos documentários que têm essa pretensão. A investigação histórica não encerra o
filme. Ela resulta numa investigação estética capaz de irritar, em
sua montagem rítmica que combina música eletrônica com falsos
"raccorts" e transforma os depoimentos em hap, qualquer ortodoxo do gênero.
Entre o tema e a forma de "Sacrificio", há também o ícone de
Che. Ele não escapa aos autores
do filme que, jovens, não conheceram Che senão enquanto tal.
Restituir a esse ícone sua verdadeira aura é, por fim, a última pretensão do filme, talvez a única
ambição que exceda o talento e a
obstinação da brava dupla sueca.
Sacrificio
Sacrificio
Direção: Erik Gandini e Tarik Saleh
Produção: Suécia, 2001
Documentário com: Ciro Bustos, Régis
Debray, Pierre Kalfon, Gary Prado, Felix
Rodriguez
Quando: só hoje, no auditório do MIS
(av. Europa, 158), às 21h. Entrada franca
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