São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2001

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CRÍTICA

Obra é rara e justa

TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

D e frente para Régis Debray, um dos intelectuais (engajados) mais renomados da cultura francesa, dois jovens documentaristas suecos não hesitam em fazer a mais grave acusação: "Você construiu sua carreira em cima de uma mentira".
A reação de Debray só não é mais constrangedora do que a de seu amigo Pierre Kalfon, historiador responsável por uma das biografias de Che Guevara. Suas explicações são tão relapsas que os dois cineastas, mal contendo a indignação, já não poderão se contentar em ficar atrás das câmeras.
Kalfon e Debray são os grandes responsáveis pela miséria de Ciro Bustos. Foram eles que cravaram o nome do ex-guerrilheiro no tal pelourinho da história. Debray, por má-fé; Kalfon, por parcialidade e preguiça. Desde que foi declarado o Judas desse Cristo da esquerda que é Guevara, Bustos apartou-se da vida. Auto-exilado em permanente perambulação pelas ruas de uma cidade sueca, ele lembra hoje um personagem de cinema moderno, um desencantado wenderiano... ou o Pierrot de Godard, depois de ter implodido a própria cabeça.
"A guerrilha nada mais era que andar", lembra o humilde Bustos que, apesar de todo o opróbrio, ainda não deixou de seguir o caminho indicado por Guevara. Mas o sentido da luta já se perdeu. Por mais que ainda procure justificar o seu auto-sacrifício, Bustos sabe perfeitamente que os seus moinhos são de vento. O suposto traidor foi traído por todos.
"Sacrificio" é o documentário dos sonhos de qualquer cineasta. Partindo de uma hipótese improvável, os seus dois diretores desemaranharam toda uma trama de erros históricos. Em sua fúria investigativa, tiraram supostos traidores do cadafalso (não apenas Bustos, mas também Camba, outro guerrilheiro acusado pelo próprio Guevara de traição) e destruíram reputações até então inabaláveis. É um filme justo, porque repõe a cada um de seus personagens a responsabilidade que lhe é devida. Doravante Bustos já não precisará mais carregar o peso que Debray e Kalfon colocaram, "oportunamente", sobre as suas costas. Todo o peso do mundo.
Apesar de ser um desses raros documentários que de fato reescrevem a história, "Sacrificio" não recai na pompa vazia e no tom oficialesco, usual nos documentários que têm essa pretensão. A investigação histórica não encerra o filme. Ela resulta numa investigação estética capaz de irritar, em sua montagem rítmica que combina música eletrônica com falsos "raccorts" e transforma os depoimentos em hap, qualquer ortodoxo do gênero.
Entre o tema e a forma de "Sacrificio", há também o ícone de Che. Ele não escapa aos autores do filme que, jovens, não conheceram Che senão enquanto tal. Restituir a esse ícone sua verdadeira aura é, por fim, a última pretensão do filme, talvez a única ambição que exceda o talento e a obstinação da brava dupla sueca.


Sacrificio
Sacrificio
    
Direção: Erik Gandini e Tarik Saleh
Produção: Suécia, 2001
Documentário com: Ciro Bustos, Régis Debray, Pierre Kalfon, Gary Prado, Felix Rodriguez
Quando: só hoje, no auditório do MIS (av. Europa, 158), às 21h. Entrada franca




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