São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2001

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6º FESTIVAL É TUDO VERDADE

"JULLIU'S BAR"

Documentário dá voz aos travestis para que revelem sua humanidade sem ressaltar lado bizarro

Filme desvenda universo GLS na Baixada

JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma das imagens mais perturbadoras de "Julliu's Bar", que passa hoje no Itaú Cultural, está logo no começo: um homem de meia-idade, com traços indígenas acentuados e cabelos grisalhos, fala sobre sua trajetória profissional enquanto conserta em sua oficina um aparelho de som.
Com voz máscula e mãos rudes, ele diz: "Na época em que trabalhava na Telerj, eu ainda me vestia como homem". É como se só então percebêssemos que ele está de vestido de alcinhas e tem seios. É "Janaína, a Índia do Brasil".
Consuelo Lins, a diretora de "Julliu's Bar", tomou conhecimento da existência de Janaína (chamada de Índia pelos amigos) por meio de uma reportagem da Folha e resolveu fazer um documentário sobre ela.
Ao procurar a Índia no bairro de Guadalupe (zona norte do Rio), entretanto, Consuelo resolveu ampliar seu projeto e abordar o cotidiano de diversos personagens (em sua maioria travestis) que orbitam em torno do Julliu's Bar, em Nova Iguaçu, considerado o único bar GLS da Baixada Fluminense.
"O mundo que a Índia me abriu foi tão interessante que o filme mudou", resume Consuelo. O documentário mantém o frescor dessa curiosidade, dessa abertura diante do múltiplo e do diferente.
Ao contrário das "reportagens especiais" televisivas, que costumam ressaltar o que há de bizarro nesses personagens, "Julliu's Bar" dá voz a eles para que revelem sua humanidade e o caminho específico que escolheram para exercê-la integralmente.
O maior mérito do documentário -todo filmado com uma câmera digital e uma equipe reduzidíssima- é o de nos distanciar de uma imagem chapada, unidimensional, do travesti. Cada um deles é um mundo, com suas relações familiares, sua atividade profissional, seu gosto estético, suas preferências sexuais.
Há os travestis que se prostituem para viver e há os que vivem de outros trabalhos: cabeleireiro, mecânico, vendedor da Avon. Como entre os heterossexuais, há os casados e os "galinhas", os caseiros e os da rua. Há os que têm filhos, os que vivem com os pais, os solitários.
Tão surpreendente quanto descobrir que há bairros da Baixada Fluminense que se chamam Éden, Austin e Guadalupe é perceber que existe entre os travestis e homossexuais da região uma ordem própria, paralela à ordem dominante, e as duas convivem quase pacificamente (descontados os crimes sexuais ocasionais).
Nesse universo destacam-se alguns indivíduos interessantíssimos, como a "bombadeira" Suelen, que implanta silicone e realiza plásticas em travestis.
Apesar do nome de travesti, e de ser totalmente modelada em silicone, Suelen é mulher, casada com outra mulher, Nádia, que parece um homem. Puro Almodóvar, só que de verdade.
Consuelo Lins diz que, ao realizar o filme, "quis sair da questão da prostituição propriamente dita, falar da vida cotidiana, das relações afetivas, sexuais, e dessa história de modificar o corpo".
O documentário consegue muito mais do que isso. "Julliu's Bar" revela matizes insuspeitados da diversidade humana, expõe múltiplas maneiras de pensar a sexualidade, cutuca preconceitos, embaralha fronteiras.
De Eduardo Coutinho, com quem trabalhou em "Babilônia 2000", Consuelo Lins mostra que aprendeu o essencial: o respeito absoluto ao "outro" e a curiosidade, não menos absoluta, pelo que ele tem a dizer.


Julliu's Bar
    
Produção: Brasil, 2000, 58 min.
Direção: Consuelo Lins
Quando: hoje, às 19h, no Itaú Cultural




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