|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
6º FESTIVAL É TUDO VERDADE
"JULLIU'S BAR"
Documentário dá voz aos travestis para que revelem sua humanidade sem ressaltar lado bizarro
Filme desvenda universo GLS na Baixada
JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Uma das imagens mais perturbadoras de "Julliu's Bar",
que passa hoje no Itaú Cultural,
está logo no começo: um homem
de meia-idade, com traços indígenas acentuados e cabelos grisalhos, fala sobre sua trajetória profissional enquanto conserta em
sua oficina um aparelho de som.
Com voz máscula e mãos rudes,
ele diz: "Na época em que trabalhava na Telerj, eu ainda me vestia
como homem". É como se só então percebêssemos que ele está de
vestido de alcinhas e tem seios. É
"Janaína, a Índia do Brasil".
Consuelo Lins, a diretora de
"Julliu's Bar", tomou conhecimento da existência de Janaína
(chamada de Índia pelos amigos)
por meio de uma reportagem da
Folha e resolveu fazer um documentário sobre ela.
Ao procurar a Índia no bairro
de Guadalupe (zona norte do
Rio), entretanto, Consuelo resolveu ampliar seu projeto e abordar
o cotidiano de diversos personagens (em sua maioria travestis)
que orbitam em torno do Julliu's
Bar, em Nova Iguaçu, considerado o único bar GLS da Baixada
Fluminense.
"O mundo que a Índia me abriu
foi tão interessante que o filme
mudou", resume Consuelo. O documentário mantém o frescor
dessa curiosidade, dessa abertura
diante do múltiplo e do diferente.
Ao contrário das "reportagens
especiais" televisivas, que costumam ressaltar o que há de bizarro
nesses personagens, "Julliu's Bar"
dá voz a eles para que revelem sua
humanidade e o caminho específico que escolheram para exercê-la integralmente.
O maior mérito do documentário -todo filmado com uma câmera digital e uma equipe reduzidíssima- é o de nos distanciar de
uma imagem chapada, unidimensional, do travesti. Cada um
deles é um mundo, com suas relações familiares, sua atividade profissional, seu gosto estético, suas
preferências sexuais.
Há os travestis que se prostituem para viver e há os que vivem
de outros trabalhos: cabeleireiro,
mecânico, vendedor da Avon.
Como entre os heterossexuais, há
os casados e os "galinhas", os caseiros e os da rua. Há os que têm
filhos, os que vivem com os pais,
os solitários.
Tão surpreendente quanto descobrir que há bairros da Baixada
Fluminense que se chamam
Éden, Austin e Guadalupe é perceber que existe entre os travestis
e homossexuais da região uma ordem própria, paralela à ordem
dominante, e as duas convivem
quase pacificamente (descontados os crimes sexuais ocasionais).
Nesse universo destacam-se alguns indivíduos interessantíssimos, como a "bombadeira" Suelen, que implanta silicone e realiza
plásticas em travestis.
Apesar do nome de travesti, e de
ser totalmente modelada em silicone, Suelen é mulher, casada
com outra mulher, Nádia, que parece um homem. Puro Almodóvar, só que de verdade.
Consuelo Lins diz que, ao realizar o filme, "quis sair da questão
da prostituição propriamente dita, falar da vida cotidiana, das relações afetivas, sexuais, e dessa
história de modificar o corpo".
O documentário consegue muito mais do que isso. "Julliu's Bar"
revela matizes insuspeitados da
diversidade humana, expõe múltiplas maneiras de pensar a sexualidade, cutuca preconceitos, embaralha fronteiras.
De Eduardo Coutinho, com
quem trabalhou em "Babilônia
2000", Consuelo Lins mostra que
aprendeu o essencial: o respeito
absoluto ao "outro" e a curiosidade, não menos absoluta, pelo que
ele tem a dizer.
Julliu's Bar
Produção: Brasil, 2000, 58 min.
Direção: Consuelo Lins
Quando: hoje, às 19h, no Itaú Cultural
Texto Anterior: Crítica - "Dr. T e as Mulheres": Novo longa de diretor não é inesquecível Próximo Texto: Teatro: "Copenhagen" exibe "semideuses humanos" Índice
|