São Paulo, sexta-feira, 06 de abril de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Piano a quatro mãos com a prima proibida

"Cuidado com as priminhas!" Antes dos cinco dias que passávamos em casa, nas férias do Natal, dom Otaviano Pereira de Albuquerque, ex-arcebispo no Maranhão, hóspede frequente do nosso seminário, fazia esse aviso com sua voz cansada. Contava casos de priminhas que seduziam os seminaristas e botavam aquilo que ele chamava de ""pensamentos imundos" na cabeça da gente.
Repetia sempre a história do seminarista de 15 anos que fora atraído pela prima mais velha, um banho na cachoeira. O menino teve os tais pensamentos imundos (somente os pensamentos, nem chegou a materializá-los). Houve um redemoinho nas águas, e o menino morreu.
De tanto repetir essa história, dom Otaviano ganhou o apelido de ""O Menino Morreu". Quando o próprio dom Otaviano morreu, com quase 100 anos de idade, um colega me ligou: ""Sabe quem morreu? O Menino Morreu". Custou-me decifrar a charada, estava em outra, nem me lembrava mais da história do menino que havia morrido na cachoeira nem mesmo de dom Otaviano, coisas passadas e esquecidas.
Volta e meia me distraio lembrando um episódio que não teve cachoeira nem terminou em morte, mas teve uma prima e um jovem seminarista de 15 anos, que era eu mesmo.
Havíamos estudado piano juntos na primeira infância. Ela continuou os estudos, chegou a dar recitais ao longo das cidades do antigo Estado do Rio. No seminário, o piano era considerado profano e, como eu não tinha voz para o coro, insisti no harmonium, belo instrumento de dois teclados, não sei quantos registros, meio desativado, pois tínhamos um órgão dos antigos -os foles movidos por escravos, mais tarde adaptados à corrente elétrica.
De qualquer forma, tocava mais de ouvido, embora usasse as mãos. O fato é que perdi a intimidade com o piano, até que, em férias de Natal, fui visitar os tios e lá encontrei a prima, que fizera progressos no piano e no corpo.
Não cheguei a ter pensamentos imundos, mas gostei de me sentar no mesmo banquinho, diante do Pleyel escuro e brilhante que meus tios lhe haviam dado. Ela colocou à minha frente a partitura de ""For Me and My Girl", que fazia sucesso num filme a que só assistiria anos mais tarde, com Gene Kelly e Judy Garland -aliás, a estréia de Kelly no cinema, se não estou enganado.
Não houve jeito. Eu perdera o ritmo, a prima tentou me incentivar, segurou minha mão direita, mas o problema não era com a melodia -eu lia bem a partitura: a dificuldade era com a mão esquerda. A prima estava à minha direita, teve de cruzar as mãos e se inclinar para me socorrer nos acordes que eu não conseguia acompanhar.
Foi estranho sentir aquele corpo, diferente do meu, colado ao peito, onde um coração ainda casto se esforçava para não ter pensamentos imundos. E, se estava atrapalhado com os acordes que me pareciam difíceis, fiquei mais atrapalhado ainda. Ela percebeu que eu não pegaria o ritmo e fechou a partitura, na qual havia a foto de Judy e Kelly emoldurada pelos sinos que tocavam para ele e para a sua garota.
Tirou uns acordes avulsos; de repente, teve uma idéia. Foi à estante em que guardava seu material de estudo e desencavou uma velha adaptação para iniciantes, ""O Lago de Como". Todos os que estudaram piano devem ter passado por ele. Havia até uma versão para quatro mãos, a do professor e a do aluno.
Foi mais fácil. Ela ficou com a parte do professor e eu fiquei com a do aluno. Já havíamos tocado aquilo, mas eu estava realmente destreinado, sentia falta das pedaleiras do harmonium que podem sustentar as notas e os acordes. A prima desanimou, olhou-me de modo estranho e disse que eu não tinha mais jeito. Pegou a bicicleta e foi dar uma volta, deixando-me sozinho diante do piano e de ""O Lago de Como".
Tomei coragem. Apanhei de volta a partitura do ""For Me and My Girl", dei um peteleco no abominável "Lago" com suas oitavas trêmulas e encarei o foxe que fazia sucesso no mundo que eu abandonara.
Fui bem até a segunda parte, mas justo no trecho em que, na versão original, Gene Kelly faz segunda voz para Judy Garland, embananei-me de vez. Fazia então o que me aconselhavam: tocava ""da capo", ou seja, começava tudo de novo, na parte mais difícil da melodia e do acompanhamento. Mas chegava ao trecho fatal e não juntava melodia e acompanhamento, saía uma salada de notas sem pé nem cabeça.
Não vi a prima, que passara de bicicleta pela calçada e ouvira o meu esforço em acertar a música profana que me era proibida. Não vi quando ela chegou por trás, inclinou-se sobre meus ombros e, segurando minhas mãos, tentou me ajudar. Dez dedos se tornaram 20, embaralhados nas teclas amareladas do piano.
Para mim, a coisa ficou mais difícil. Ela estava um pouco suada da bicicleta, e eu gostei daquele calor que vinha do seu peito. Ela percebeu isso, suas mãos seguraram as minhas. Senti sua boca na nuca, nuca branca saindo da batina escura. Não me lembro se tive pensamentos imundos. O certo é que não morri naquele instante, o que foi pena.



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