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CARLOS HEITOR CONY
Piano a quatro mãos com a prima proibida
"Cuidado com as priminhas!" Antes dos cinco
dias que passávamos em casa, nas
férias do Natal, dom Otaviano
Pereira de Albuquerque, ex-arcebispo no Maranhão, hóspede frequente do nosso seminário, fazia
esse aviso com sua voz cansada.
Contava casos de priminhas que
seduziam os seminaristas e botavam aquilo que ele chamava de
""pensamentos imundos" na cabeça da gente.
Repetia sempre a história do seminarista de 15 anos que fora
atraído pela prima mais velha,
um banho na cachoeira. O menino teve os tais pensamentos
imundos (somente os pensamentos, nem chegou a materializá-los). Houve um redemoinho nas
águas, e o menino morreu.
De tanto repetir essa história,
dom Otaviano ganhou o apelido
de ""O Menino Morreu". Quando
o próprio dom Otaviano morreu,
com quase 100 anos de idade, um
colega me ligou: ""Sabe quem
morreu? O Menino Morreu". Custou-me decifrar a charada, estava
em outra, nem me lembrava mais
da história do menino que havia
morrido na cachoeira nem mesmo de dom Otaviano, coisas passadas e esquecidas.
Volta e meia me distraio lembrando um episódio que não teve
cachoeira nem terminou em morte, mas teve uma prima e um jovem seminarista de 15 anos, que
era eu mesmo.
Havíamos estudado piano juntos na primeira infância. Ela continuou os estudos, chegou a dar
recitais ao longo das cidades do
antigo Estado do Rio. No seminário, o piano era considerado profano e, como eu não tinha voz para o coro, insisti no harmonium,
belo instrumento de dois teclados,
não sei quantos registros, meio
desativado, pois tínhamos um órgão dos antigos -os foles movidos por escravos, mais tarde
adaptados à corrente elétrica.
De qualquer forma, tocava
mais de ouvido, embora usasse as
mãos. O fato é que perdi a intimidade com o piano, até que, em férias de Natal, fui visitar os tios e lá
encontrei a prima, que fizera progressos no piano e no corpo.
Não cheguei a ter pensamentos
imundos, mas gostei de me sentar
no mesmo banquinho, diante do
Pleyel escuro e brilhante que
meus tios lhe haviam dado. Ela
colocou à minha frente a partitura de ""For Me and My Girl", que
fazia sucesso num filme a que só
assistiria anos mais tarde, com
Gene Kelly e Judy Garland
-aliás, a estréia de Kelly no cinema, se não estou enganado.
Não houve jeito. Eu perdera o
ritmo, a prima tentou me incentivar, segurou minha mão direita,
mas o problema não era com a
melodia -eu lia bem a partitura:
a dificuldade era com a mão esquerda. A prima estava à minha
direita, teve de cruzar as mãos e
se inclinar para me socorrer nos
acordes que eu não conseguia
acompanhar.
Foi estranho sentir aquele corpo, diferente do meu, colado ao
peito, onde um coração ainda
casto se esforçava para não ter
pensamentos imundos. E, se estava atrapalhado com os acordes
que me pareciam difíceis, fiquei
mais atrapalhado ainda. Ela percebeu que eu não pegaria o ritmo
e fechou a partitura, na qual havia a foto de Judy e Kelly emoldurada pelos sinos que tocavam para ele e para a sua garota.
Tirou uns acordes avulsos; de
repente, teve uma idéia. Foi à estante em que guardava seu material de estudo e desencavou uma
velha adaptação para iniciantes,
""O Lago de Como". Todos os que
estudaram piano devem ter passado por ele. Havia até uma versão para quatro mãos, a do professor e a do aluno.
Foi mais fácil. Ela ficou com a
parte do professor e eu fiquei com
a do aluno. Já havíamos tocado
aquilo, mas eu estava realmente
destreinado, sentia falta das pedaleiras do harmonium que podem sustentar as notas e os acordes. A prima desanimou, olhou-me de modo estranho e disse que
eu não tinha mais jeito. Pegou a
bicicleta e foi dar uma volta, deixando-me sozinho diante do piano e de ""O Lago de Como".
Tomei coragem. Apanhei de
volta a partitura do ""For Me and
My Girl", dei um peteleco no abominável "Lago" com suas oitavas
trêmulas e encarei o foxe que fazia sucesso no mundo que eu
abandonara.
Fui bem até a segunda parte,
mas justo no trecho em que, na
versão original, Gene Kelly faz segunda voz para Judy Garland,
embananei-me de vez. Fazia então o que me aconselhavam: tocava ""da capo", ou seja, começava
tudo de novo, na parte mais difícil da melodia e do acompanhamento. Mas chegava ao trecho fatal e não juntava melodia e
acompanhamento, saía uma salada de notas sem pé nem cabeça.
Não vi a prima, que passara de
bicicleta pela calçada e ouvira o
meu esforço em acertar a música
profana que me era proibida. Não
vi quando ela chegou por trás, inclinou-se sobre meus ombros e, segurando minhas mãos, tentou me
ajudar. Dez dedos se tornaram
20, embaralhados nas teclas amareladas do piano.
Para mim, a coisa ficou mais difícil. Ela estava um pouco suada
da bicicleta, e eu gostei daquele
calor que vinha do seu peito. Ela
percebeu isso, suas mãos seguraram as minhas. Senti sua boca na
nuca, nuca branca saindo da batina escura. Não me lembro se tive pensamentos imundos. O certo
é que não morri naquele instante,
o que foi pena.
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