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NINA HORTA
As revelações da porta da geladeira
Geladeira é um armário
que fecha as suas portas para
uma intimidade de muito frio, a
intimidade do gelo. Fechada, endurecendo o que é mole, guardando a essência do sorvete, o
quebranto do pudim.
Os velhos da família se lembram
dos caminhões cheios de gelo despejando as pedras nas portas, refletindo as luzes do dia, levadas
desajeitadamente para o compartimento anão cheirando a lata velha. E as geladeiras do sítio, movidas a querosene, precárias, no escuro dos quartinhos de tijolos
com prateleiras de papel rendado.
E aquela das férias de dezembro, à
beira-mar, num canto da cozinha
de ladrilhos, que sacudida nos
seus frágeis ossos por um motor
potente, andava e todas as manhãs surgia à porta da sala num
horrível desapontamento de bicho ferido.
A primeira Westinghouse ou
Frigidaire ou GM, enorme, que a
vizinhança veio visitar entre comovida e desconfiada. A geladeira era um ser das neves, um segredo, um pouco dos pólos nos trópicos, um frescor de mistério.
E, de repente, foi-se embora o
sagrado, quebrou-se o pingüim
de olhinhos de botão que zelava
por seu território. Quem tomou a
frente, qual carranca engalanada
para festa do São Francisco?
A PORTA! Quem diria... A porta, a porta que fechava para armazenar o frio e esconder a nossa intimidade alimentar passa a ser o
espelho da nossa vida, do nosso
consumo. A porta da geladeira revela mais que a casa inteira. Diga-me o que tens na porta dir-te-ei
quem és.
Corra até a internet. Digite "enfeites de porta de geladeira", ou
"fridge magnets". Um sociólogo
pode desenvolver ali a sua tese de
mestrado. O convite de casamento chega com o imã e o aviso de
que Pedro e Paula se casam no dia
tal. O boletim da escola guardado
na mala de couro até o último dia?
Não, agora passa a semana dependurado na geladeira para a desonra ou para a glória.
E os formandos sem beca foram
pegos em foto cândida e sorriem
na porta da geladeira, lá em cima,
no freezer. É Veneza, Lourdes, Lisieux, Paris e Assis, cartões-postais que chegam, você viaja na
porta da geladeira entre palmeiras
e surfe. O primeiro dente que era
enterrado debaixo das roseiras ou
jogado no telhado é mandado para a Central dos Enfeites e volta
em três dias em invólucro transparente como os das relíquias dos
santos. Para a porta da geladeira.
Não é possível evitar os recados
e os mandos e os desmandos da
porta da geladeira. Se alguém quiser a porta branca, outro alguém
se encarregará de usar os lados. E
é endereço de pizza, de açougue,
de anticupinizante, de dietas mirabolantes, bonequinhas de vestir
e desvestir, a Monalisa de bigode,
recortes de jornais, o e-mail da
mãe, boquinhas que riem ou choram conforme o estado de ânimo
da cozinheira. Ah, e as dívidas a
serem pagas também moram, desavergonhadas, na porta da geladeira.
Já estava avançada neste artigo
quando recebi este comunicado
da agência Ansa. Uma proposta
de artistas cubanos transformou
cerca de 50 refrigeradores dos
anos 40 e 50 (verdadeiras relíquias) em outras tantas obras de
arte que evocam carros clássicos,
ataúdes, cadeados ou imensas latas de cerveja...
A nona bienal de arte que acontece em Havana tem entre suas
idéias mais originais, com o nome
de Manual de Instruções, transformar as geladeiras antigas
(fríos, como são chamadas em
Cuba) em arte. As geladeiras trabalhadas em óleo, acrílico, areia,
folhas de palmeira e latão, entre
outros materiais, surpreendem ao
virarem um carro, um féretro ou
um enorme coração, ou um cadeado com chave e tudo intitulado High Security. Então, nem só a
porta vive uma transformação,
nossa geladeira antiga também é
arte escancarada para o mundo.
A geladeira LG-Smart Fridge,
tem um PC de tela plana na porta
com câmara de vídeo, microfone,
alto-falantes e internet. E, assim, a
geladeira é um tudo. Torna-se,
por inteiro, o centro estratégico
da casa. Façamos bom proveito.
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