São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2006

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NINA HORTA

As revelações da porta da geladeira

Geladeira é um armário que fecha as suas portas para uma intimidade de muito frio, a intimidade do gelo. Fechada, endurecendo o que é mole, guardando a essência do sorvete, o quebranto do pudim.
Os velhos da família se lembram dos caminhões cheios de gelo despejando as pedras nas portas, refletindo as luzes do dia, levadas desajeitadamente para o compartimento anão cheirando a lata velha. E as geladeiras do sítio, movidas a querosene, precárias, no escuro dos quartinhos de tijolos com prateleiras de papel rendado. E aquela das férias de dezembro, à beira-mar, num canto da cozinha de ladrilhos, que sacudida nos seus frágeis ossos por um motor potente, andava e todas as manhãs surgia à porta da sala num horrível desapontamento de bicho ferido.
A primeira Westinghouse ou Frigidaire ou GM, enorme, que a vizinhança veio visitar entre comovida e desconfiada. A geladeira era um ser das neves, um segredo, um pouco dos pólos nos trópicos, um frescor de mistério.
E, de repente, foi-se embora o sagrado, quebrou-se o pingüim de olhinhos de botão que zelava por seu território. Quem tomou a frente, qual carranca engalanada para festa do São Francisco?
A PORTA! Quem diria... A porta, a porta que fechava para armazenar o frio e esconder a nossa intimidade alimentar passa a ser o espelho da nossa vida, do nosso consumo. A porta da geladeira revela mais que a casa inteira. Diga-me o que tens na porta dir-te-ei quem és.
Corra até a internet. Digite "enfeites de porta de geladeira", ou "fridge magnets". Um sociólogo pode desenvolver ali a sua tese de mestrado. O convite de casamento chega com o imã e o aviso de que Pedro e Paula se casam no dia tal. O boletim da escola guardado na mala de couro até o último dia? Não, agora passa a semana dependurado na geladeira para a desonra ou para a glória.
E os formandos sem beca foram pegos em foto cândida e sorriem na porta da geladeira, lá em cima, no freezer. É Veneza, Lourdes, Lisieux, Paris e Assis, cartões-postais que chegam, você viaja na porta da geladeira entre palmeiras e surfe. O primeiro dente que era enterrado debaixo das roseiras ou jogado no telhado é mandado para a Central dos Enfeites e volta em três dias em invólucro transparente como os das relíquias dos santos. Para a porta da geladeira.
Não é possível evitar os recados e os mandos e os desmandos da porta da geladeira. Se alguém quiser a porta branca, outro alguém se encarregará de usar os lados. E é endereço de pizza, de açougue, de anticupinizante, de dietas mirabolantes, bonequinhas de vestir e desvestir, a Monalisa de bigode, recortes de jornais, o e-mail da mãe, boquinhas que riem ou choram conforme o estado de ânimo da cozinheira. Ah, e as dívidas a serem pagas também moram, desavergonhadas, na porta da geladeira.
Já estava avançada neste artigo quando recebi este comunicado da agência Ansa. Uma proposta de artistas cubanos transformou cerca de 50 refrigeradores dos anos 40 e 50 (verdadeiras relíquias) em outras tantas obras de arte que evocam carros clássicos, ataúdes, cadeados ou imensas latas de cerveja...
A nona bienal de arte que acontece em Havana tem entre suas idéias mais originais, com o nome de Manual de Instruções, transformar as geladeiras antigas (fríos, como são chamadas em Cuba) em arte. As geladeiras trabalhadas em óleo, acrílico, areia, folhas de palmeira e latão, entre outros materiais, surpreendem ao virarem um carro, um féretro ou um enorme coração, ou um cadeado com chave e tudo intitulado High Security. Então, nem só a porta vive uma transformação, nossa geladeira antiga também é arte escancarada para o mundo.
A geladeira LG-Smart Fridge, tem um PC de tela plana na porta com câmara de vídeo, microfone, alto-falantes e internet. E, assim, a geladeira é um tudo. Torna-se, por inteiro, o centro estratégico da casa. Façamos bom proveito.


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