São Paulo, segunda, 6 de abril de 1998

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Nossos erros comem a Amazônia pelas beiradas

FERNANDO GABEIRA
colunista da Folha No início da década de 90, Jorge Araújo e eu partíamos todas as manhãs de Porto Velho (RO) e documentávamos as queimadas e tudo o que representavam.
Naquela experiência, que resultou numa série de reportagens, tinha uma impressão de que as novas queimadas iam se suceder, mas buscaríamos uma solução para elas.
Não contava com fator fundamental: a vulnerabilidade da mata ia aumentar com a exploração da Amazônia, que está sendo comida pelas beiradas. Os pedaços de árvores, folhas mortas, galhos que vão ficando no rastro da atividade madeireira vão abrindo flancos para novos incêndios.
Confesso que tive uma outra ilusão em Altamira -a de que faríamos uma grande frente dos Povos da Floresta e que, apoiados na solidariedade internacional, pudessem ter algum peso no futuro da Amazônia.
As esperanças do encontro de Altamira não se realizaram, mas não estão mortas. É preciso apenas encontrar os interlocutores entre as forças políticas locais e, sobretudo, formular saídas porque o fato de que a Amazônia está em perigo é um lugar-comum.
Subindo a BR-174 rumo à Venezuela, percorrendo savanas carbonizadas pelo fogo, constato que os rios quase sumiram nessa seca. O primeiro grande rio que encontrei, o Urariquera, formador do Rio Branco, estava raso, e seu leito projetava grandes bancos de areia.
Mais para perto de Santa Helena, rios e igarapés estavam minguando, numa terra seca com reses mortas decompondo-se ao sol. Percebo agora a rapidez do processo de degradação ecológica em confronto com a lentidão das nossas respostas.
Esqueço o governo nessa história. Refiro-me apenas a intercâmbio de idéias. O que aconteceu em Roraima deve estar não em uma simples busca de culpados, mas numa agenda. Essa agenda, se tiver respaldo social, pode ser imposta aos políticos.
Uma visão de distribuição de terras está em choque com o meio ambiente, e o diálogo dessas duas variáveis tem que começar a ser feito em toda a parte, principalmente no poder.
Outra questão é qual política se adotar com as queimadas. Argumenta-se que é cultural, e os próprios colonos dizem: "Se não queimar, não planto. Se não plantar, não como". Muitos hábitos culturais podem ser superados desde que não se reduza sua superação a uma tática pedagógica, a uma pura educação ambiental.
Buscar alternativas práticas -a mecanização, por exemplo- é o único ambiente onde uma educação ambiental prosperaria. Quem sabe, garantir trator para um grupo de famílias, agora que se abriu uma linha de empréstimo solidário, assumido em conjunto por quatro ou cinco credores.
Grande urgência que vem da fumaça: o Brasil precisa se dotar de um serviço nacional de combate a incêndios florestais. É um tipo de projeto que, se bem formulado, pode envolver a colaboração internacional, que é extremamente bem-vinda, sobretudo quando a gente sabe o que quer. Os argentinos tiveram essa experiência após o incêndio de Bariloche. Em poucos horas, voaram para o Brasil e usaram bem seus equipamentos. Aprenderam com um grande incêndio.
Será que podemos nos dar ao luxo de não aprender?
Mas talvez tenha tenha tido mesmo uma sensação de urgência no cara de chapéu azul. O cara do chapéu azul é o personagem de uma história que não posso perder em minhas anotações. Um grupo de deputados pergunta solenemente ao alto comando do combate aos incêndios pelo representante do Previ-Fogo. Todos se interrogam meio surpresos. Para romper com o embaraço, um deles disse: "Deve ser um cara que esteve aqui ontem".
"Que passou por aqui", completou outro.
Isso, um cara de chapéu azul. Sabíamos pelo combinado, inclusive na lei: o Previ-Fogo teria de ser a coordenação de tudo. Se virou um cara do chapéu azul, era porque estávamos começando uma nova experiência, na qual o Exército e os bombeiros se saíram bem. Mas era improvisada.
Mas abriu-se um caminho para uma função ambiental das Forças Armadas, sem as quais a preservação da Amazônia fica praticamente impossível. Pena que essa abertura não tenha sido tão grande no debate sobre o Sivam. Um projeto daquela dimensão poderia ter incluído o combate ao incêndio florestal.
Voltamos à ilusão do início: a de que as queimadas se sucederiam e acabariam se reduzindo com os anos. O dado estratégico é que, atacada pelas bordas e retalhada por madeireiras, ela não resiste como antes. Os próprios satélites não conseguem ver totalmente o que se passa.
Num artigo sobre incêndios na Amazônia, o engenheiro florestal Carlos Ferreira Castro mostra como uma área de Paragominas (PA), que era tida com um índice de 65% de floresta nas imagens do Landsat Thematic Mapper, visto embaixo, por técnicos do Ipam, revelava apenas 6% de mata primária.
Portanto, é todo mundo vestir logo esse boné azul, caso contrario, como lembra Ferreira Castro, a história da Amazônia se contará a ferro e fogo, como Warren Dean contou a historia da Mata Atlântica. Do principio, até o fim.



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