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São Paulo, terça-feira, 06 de maio de 2003

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POESIA

No embalo da música das esferas

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fui surpreendido, hoje de manhã, pelo telefonema da reportagem da Folha.
Transmitiram-me uma notícia que me deixou atônito e contristado: a da morte com inadmissível, tão desnorteante -já que o colheu em pleno vôo de imaginação poética e comunitária- do poeta (até o momento assessorando o cantor e compositor Gilberto Gil na sua gestão, que auguro se mostrará extraordinária, como ministro da Cultura do governo Lula).
O Waly Salomão (Sailormoon), querido amigo já de anos e inventivo poeta e letrista "pop-erudito", "pop-cultural", que sabia fundir-se admiravelmente a elegância mensurada de mestre-sala de carnavais e avenidas, a executar, no espaço público dos sambódromos, os seus minuetos bárbaros e volatéis em torno de uma cativante e sempre esquiva porta-bandeira (a própria poesia?). Waly Sailormoon, o navilouco saído de um romance virtual de Jorge Amado, capaz de misturar em sua eroto-culinária libano-afro-baiana, aos quibes e esfihas levantinos, a pimenta picante e o dendê, mais o aroma capitoso do cravo e da canela das gabrielas mulatas, cantadas por Jorge e por Gregório de Matos.
Lembro-me de um Carnaval em Salvador, para o qual ele e Gil me convidaram. Hipnotizado por suas gargalhadas estalantes, quase que me encarapitei no topo de um trio-elétrico, eu, um poeta já provecto e entrado na idade do "ossio com dignidade". E só escapei do perigo eminente graças à intervenção de outro amigo, o Risério, talvez que me advertiu prevendo o pior: "Se sobe agora às nove da noite, só pode baixar às nove da manhã do dia seguinte, e com os ouvidos zoados por uma turbilhonante percursão detonada à beira-tambor".

Encontro
Também guardo indelével o registro do encontro que promovi entre o cubano Severo Sarduy, o vertiginoso autor de "De donde Son Los Cantares?".
São estas as lembranças epifânicas que posso reunir na comoção do momento, para exconjurar a grisália atmosfera de hospitais e necrotérios. Parafraseando o nosso Guimarães (o Rosa da prosa), morrer para alguém como o nosso poeta nave louco Waly Saylormoon não é apenas "ficar", "mas continuar encantado e encantando", agora ritmo da música das esferas, gingando e emitindo um evoé: "me segura que eu vou dar um troço!".


Haroldo de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de, entre outros, "A Máquina do Mundo Repensada" (Ateliê Editorial).


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