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POESIA
No embalo da música das esferas
HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fui surpreendido, hoje de manhã, pelo telefonema da reportagem da Folha.
Transmitiram-me uma notícia
que me deixou atônito e contristado: a da morte com inadmissível, tão desnorteante -já que o
colheu em pleno vôo de imaginação poética e comunitária- do
poeta (até o momento assessorando o cantor e compositor Gilberto Gil na sua gestão, que auguro se mostrará extraordinária,
como ministro da Cultura do governo Lula).
O Waly Salomão (Sailormoon),
querido amigo já de anos e inventivo poeta e letrista "pop-erudito", "pop-cultural", que sabia
fundir-se admiravelmente a elegância mensurada de mestre-sala de carnavais e avenidas, a executar, no espaço público dos
sambódromos, os seus minuetos
bárbaros e volatéis em torno de
uma cativante e sempre esquiva
porta-bandeira (a própria poesia?). Waly Sailormoon, o navilouco saído de um romance virtual de Jorge Amado, capaz de
misturar em sua eroto-culinária
libano-afro-baiana, aos quibes e
esfihas levantinos, a pimenta picante e o dendê, mais o aroma capitoso do cravo e da canela das
gabrielas mulatas, cantadas por
Jorge e por Gregório de Matos.
Lembro-me de um Carnaval
em Salvador, para o qual ele e Gil
me convidaram. Hipnotizado
por suas gargalhadas estalantes,
quase que me encarapitei no topo de um trio-elétrico, eu, um
poeta já provecto e entrado na
idade do "ossio com dignidade".
E só escapei do perigo eminente
graças à intervenção de outro
amigo, o Risério, talvez que me
advertiu prevendo o pior: "Se sobe agora às nove da noite, só pode baixar às nove da manhã do
dia seguinte, e com os ouvidos
zoados por uma turbilhonante
percursão detonada à beira-tambor".
Encontro
Também guardo indelével o registro do encontro que promovi
entre o cubano Severo Sarduy, o
vertiginoso autor de "De donde
Son Los Cantares?".
São estas as lembranças epifânicas que posso reunir na comoção
do momento, para exconjurar a
grisália atmosfera de hospitais e
necrotérios. Parafraseando o nosso Guimarães (o Rosa da prosa),
morrer para alguém como o nosso poeta nave louco Waly Saylormoon não é apenas "ficar", "mas
continuar encantado e encantando", agora ritmo da música das
esferas, gingando e emitindo um
evoé: "me segura que eu vou dar
um troço!".
Haroldo de Campos é poeta, tradutor e
ensaísta, autor de, entre outros, "A Máquina do Mundo Repensada" (Ateliê Editorial).
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