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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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Pedro Almodóvar fala sobre "La Mala Educación", longa parcialmente autobiográfico sobre os anos "sombrios" que passou numa escola católica na década de 60

Infância de pesadelo

BRUNO LESTER
DA IFA

Pedro Almodóvar está atrás das câmeras outra vez, rodando o trabalho que vai completar seus dois últimos filmes, oscarizados e aclamados -""Tudo sobre Minha Mãe" (ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2000) e ""Fale com Ela" (que recebeu o Oscar de melhor roteiro em 2003). E o novo filme do bombástico diretor espanhol certamente será o mais polêmico de sua carreira.
O parcialmente autobiográfico ""La Mala Educación" retratará o ensino católico na Espanha sob uma luz dura e impiedosa, mostrando casos de padres abusando de crianças e um episódio de pedofilia. ""Eu me recordo daquela época como um pesadelo", diz o roteirista e diretor de 51 anos, lembrando a escola de sua infância. ""Foi um dos períodos mais sombrios de minha vida. O filme é um retrato da educação horrenda que eu e outras pessoas de minha geração tivemos."
Apesar de a trama parecer conter ecos da crise que atinge a Igreja Católica nesse momento, Almodóvar diz que seu objetivo não é fazer comentários moralizadores. ""O filme não é contra a igreja -é contra os maus professores, que, no caso, são padres."
""La Mala Educación" é o 15º filme de Almodóvar. A história é baseada num conto que o diretor escreveu há cerca de 30 anos e que ele e o cineasta Agustí Villaronga transformaram em roteiro em 97. Depois de completar um primeiro esboço do texto, Almodóvar engavetou os planos para o filme, temendo que a história não rendesse o tipo de longa que seu público esperava. Em lugar disso, fez seu filme mais bem-sucedido até agora, ""Tudo sobre Minha Mãe".
""Por muito tempo, tive medo de contar histórias muito pessoais", diz. ""Queria que meus filmes fizessem sucesso. Fiz as comédias que esperavam de mim."
Com o drama ""Fale com Ela" (2002), decidiu que era hora de contar uma história mais pessoal. "Precisava explorar coisas novas. Estava saturado do Almodóvar de dez anos antes. Eu me sentia pressionado a corresponder à imagem que se fazia de mim, e meu estilo de fazer cinema tinha virado comum e corriqueiro. Transformaram-me em adjetivo: tal coisa é almodovariana. É a pior coisa que pode acontecer com você, criativamente falando."

"Amor, ódio e vingança"
O cineasta não esperava que ""Fale com Ela", trabalho mais sutil, fizesse sucesso, mas, quando isso aconteceu, lhe "deu mais confiança para poder contar histórias mais pessoais".
""La Mala Educación" é um filme desse tipo, pessoal. Conta a história da amizade entre dois meninos que são abusados por seus professores numa escola católica na década de 60. Quando os dois se reencontram, 15 anos mais tarde, um deles é um cineasta que trabalha num filme sobre os sofrimentos que passaram quando crianças, e o outro é um travesti que nutre esperanças de fazer carreira como ator. ""É sobre amor, ódio e vingança", diz o diretor.
""Meus filmes estão evoluindo com o tempo, tornando-se mais abertamente emocionais", afirma Almodóvar. ""Estou me tornando mais direto, mais abertamente sentimental e emocional. Sinto-me mais maduro -mais, talvez, do que gostaria de ser." Ele ri. ""Aliás, acho que isso é um sintoma da maturidade."
Almodóvar é conhecido principalmente por sua visão das mulheres e a maneira como dirige atrizes. Suas cartas de amor às mulheres chegaram ao auge com ""Tudo sobre Minha Mãe", e diversas atrizes de Hollywood, de Jane Fonda a Nicole Kidman, já o procuraram.
""Acho que isso vai acontecer algum dia, sim", diz ele, sobre trabalhar com Kidman. Almodóvar queria dirigir a atriz australiana em ""As Horas", mas o diretor Stephen Daldry chegou antes.
Por enquanto, pelo menos, o espanhol parece ter deixado de focalizar as mulheres, transferindo sua atenção para os homens, primeiro com ""Carne Trêmula", depois com ""Fale com Ela" e agora com ""La Mala Educación".
""Estou interessado em mostrar homens que são emotivos e frágeis. Não quero fazer apenas filmes sobre mulheres, mas durante muito tempo achei mais fácil contar histórias sobre elas porque, embora a cultura espanhola seja machista, são as mulheres que estão tomando as decisões. Elas são mais fortes, mais interessantes e mais complexas do que os homens. Têm uma capacidade maior de se surpreender, e seu sofrimento é mais espetacular do que o de um homem. Agora é um grande desafio para mim contar histórias sobre homens que possam ser tão interessantes quanto as histórias de mulheres."

"Emoções perversas"
Desde a infância, a grande paixão de Almodóvar foi o cinema, no qual buscava consolo num mundo muito diferente daquele que habitava. O cineasta conta que foi criado à base de filmes americanos e que gostava especialmente dos clássicos dos anos 50 e início dos anos 60.
""Quando tinha 11 anos, havia um cinema na rua da escola onde estudava. Na escola, os padres tentavam moldar meu espírito, deformando-o com tenacidade religiosa. Felizmente, perto de lá, nos bancos do cinema, eu me reconciliava com o mundo, com meu mundo -um mundo dominado por emoções perversas, às quais tinha certeza de pertencer."
Almodóvar chegou a Madri em meados dos anos 70. Para sobreviver, criou HQs, atuou num número drag, cantou num grupo de rock e trabalhou para uma empresa de telefonia, ao mesmo tempo em que rodava filmes experimentais nos finais de semana.
""A única escola de cinema que havia no país tinha sido fechada pelo [general espanhol Francisco] Franco, então fui obrigado a aprender por conta própria a fazer cinema", conta.
Almodóvar fala com dinamismo, confiança, humor e intensidade. É fácil imaginar que possa ser alguém difícil de trabalhar, e ele próprio admite já ter ""queimado" seu relacionamento com amigos e atores de longa data. ""Tenho problemas com todos eles", diz, sorrindo. ""Meus relacionamentos de trabalho são tão intensos que às vezes se tornam semelhantes ao que existe entre amantes."
Mesmo assim, seus atores parecem sempre querer voltar. Leonor Watling e Javier Camara, ambos de ""Fale com Ela", integram ""La Mala Educación".
E o diretor em processo de amadurecimento, cujo próximo projeto reunirá Antonio Banderas e Penélope Cruz, dois dos colaboradores da fase inicial, hoje leva uma vida muito mais tranquila. Antigamente, Almodóvar adorava frequentar o cenário clubber, mas agora, afirma, não sai mais: ""Nos últimos anos, me isolei muito. Não posso continuar a levar a vida que levava 20 anos atrás. Além do fato de que acabaria morrendo, ficaria entediado".
""Quando cheguei à casa dos 40 anos, algo mudou. Não dá mais para passar a noite toda fora e ainda escrever roteiros ótimos no dia seguinte." Com um sorriso, afirma: ""É uma pena, porque continuo a sentir as mesmas necessidades de quando tinha 20 anos".

"Degenerado espanhol"
Almodóvar, que é abertamente gay e já chegou a se descrever como ""um conhecido degenerado espanhol", repudia a correção política de Hollywood e se manifestou contra a invasão americana do Iraque no discurso que proferiu ao aceitar o Oscar neste ano. Essa postura contra a correção política é a principal razão pela qual o diretor vem dizendo ""não" a projetos americanos por 15 anos.
Ele mudou de idéia alguns anos atrás e escreveu um roteiro sombrio e pouco convencional baseado no romance ""The Paper Boy", publicado por Pete Dexter em 1992. Embora essa história, sobre um garoto que chega à idade adulta nos pântanos da Flórida, seja uma possibilidade futura, Almodóvar diz estar com a cabeça agora tomada unicamente por ""La Mala Educación".
O filme está custando 8,5 milhões, o que o torna a produção espanhola mais cara já feita. As filmagens, previstas para durar três meses (as mais longas em se tratando de um título espanhol), estão tendo lugar em Barcelona, Valência e Madri. Almodóvar está produzindo o filme ao lado de seu irmão, Agustín, através da empresa deles, El Deseo. O longa será distribuído mundialmente pela Warner Bros. e é estrelado por Gael García Bernal, de ""O Crime do Padre Amaro".
""Na realidade, todos os meus filmes são sobre eu mesmo", diz Almodóvar. ""Apenas me escondo por trás dos personagens. E o humor negro, quase cruel, dos meus filmes é muito espanhol. Sinto-me em sintonia com isso."
Quanto a apreciar seu enorme sucesso internacional, conclui: ""Infelizmente, o mal-estar que sinto em curtir o que fiz no passado -e isso é algo que faz parte de minha personalidade- me impede de desfrutar o que já realizei. Meu verdadeiro amadurecimento virá no dia em que conseguir olhar para trás e sentir que aquilo que já fiz me faz companhia, me dá memórias e me dá prazer".


Tradução Clara Allain


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