|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Pelas dúvidas do olhar adolescente, narrativa se desvia do lugar-comum do Holocausto
FLÁVIO MOURA
FREE-LANCE PARA A FOLHA
De quem testemunhou o Holocausto, o que menos se espera é um relato capaz de abordar
a brutalidade do extermínio por
um ângulo que não seja o do espanto e da indignação. Mas é desse ponto que fala o húngaro Imre
Kertész, 73, sobrevivente dos
campos de concentração de
Auschwitz e Buchenwald e Nobel
de Literatura do ano passado.
Romance que a editora Planeta
lança no Brasil no fim de setembro, "Sem Destino" é de sua obra
o livro que melhor espelha esse
traço - e também o responsável
pela premiação. Publicado em
1975 e valorizado somente após a
tradução para o alemão, é narrado por um adolescente de 15 anos,
a mesma idade do autor ao ser
preso pelos nazistas.
György Köves, o protagonista,
acaba de ter o pai convocado para
servir o Exército em "trabalhos
forçados". Responsável pelo sustento da família, consegue emprego numa refinaria e, com isso, um
passe que lhe permite circular
com liberdade por Budapeste.
Dois meses depois, no ônibus a
caminho do trabalho, é preso com
os colegas numa batida policial.
Após dias detidos numa fábrica,
iniciam um périplo por Auschwitz, Buchenwald e Zeitz.
"Sem Destino" é o relato do dia-a-dia nesses campos. Mais que a
sordidez dos detalhes, o que impressiona é a leveza do ponto de
vista. O garoto descobre aos poucos que os prisioneiros não estão
ali por crimes cometidos; que nos
campos nenhum eufemismo pode ser mais cruel do que "trabalhos forçados"; que as lareiras que
ardem sem parar são na verdade
crematórios. E nem por isso empreende uma cruzada contra a
barbárie, caminho seguido pelo
grosso das obras sobre o tema.
Pelo contrário: encontra modos
de naturalizar o absurdo que o
cerca. A guerra e a perseguição
não lhe parecem um estado de exceção, mas a regra, e nela é capaz
de enxergar gradações impensáveis para quem vê a brutalidade
de fora. O guarda que os prende
no ônibus, por exemplo, é descrito como um sujeito de olhos claros e rosto curtido pelo sol que o
rapaz qualifica como "simpático". "Nós o rodeamos descontraídos, rindo como se fosse um professor numa excursão, e ele ficou
no meio do grupo, reflexivo, acariciando o queixo."
Ao mesmo tempo em que intui
seu destino, o rapaz vê na prisão
uma oportunidade de se livrar
dos laços familiares, da angústia
em substituir o papel do pai, da
indecisão entre viver com a mãe
ou a madrasta. Nesse sentido, a
detenção é uma forma de liberdade. "Ao meu redor, por todos os
lados, sons alegres, gente que chapinhava, espirrava, assoprava: foi
um momento feliz, despreocupado", lê-se na passagem em que toma o primeiro banho em Auschwitz - o mesmo banho que, para
uma parcela dos presos, seria de
gás letal, e não de água.
Disponibilidade semelhante
aparece em sua relação com o judaísmo. György não cultiva espécie nenhuma de celebração de
suas raízes. A dúvida adolescente
fala mais alto, e ele se ressente da
falta de pragmatismo das orações
do rabino, além de não entender
por que tem de falar com Deus em
hebraico, língua que não domina.
O tempo, mais que a violência,
aparece ao narrador como obstáculo a ser superado num campo
de concentração. As manhãs frias
ao lado da cerca de arame farpado, as duas viagens diárias ao barracão dos banhos, a distribuição
da sopa rala, a contagem dos blocos, os gritos, latidos e estampidos
distantes alongavam seus dias numa espera interminável.
"É horrível", diz um personagem a essa altura. Mas logo é
emendado pelo narrador. Horrível não era a palavra. "Esse tédio,
aliado à estranha espera: creio que
esta impressão, aproximada, represente na verdade Auschwitz."
A comparação entre os campos
de concentração é outra sutileza
digna de atenção. Ao ser transferido para Buchenwald, o menino
acredita que um campo "apenas"
de trabalhos forçados, em que as
pessoas não sejam atiradas nas
fornalhas por qualquer razão, seja
quase uma bênção. Por isso afirma que logo se "afeiçoou" a Buchenwald. E adiante conclui: "A
despeito das circunstâncias, foram dias dourados".
A ironia, a ausência de julgamento moral e as indagações desconcertantes produzidas pelo
olhar adolescente parecem soluções capazes de dar conta da situação-limite que Kertész se propôs representar.
O tema é central em sua obra:
"Fiasco", de 1988, a ser publicado
no Brasil pela Planeta no ano que
vem, e "Kadish por uma Criança
Não Nascida", de 1990, relançado
há pouco pela Imago, são desdobramentos desse enfoque. O processo culmina com seu romance
mais recente, "Felszamolas" (algo
como "Liquidação"), que acaba
de sair na Hungria e trata da geração mais nova, que não viveu o
Holocausto de maneira direta.
O alemão W.G. Sebald (1944-2001), também autor de romances que tematizam o extermínio
dos judeus, costumava dizer que
o episódio era inabordável pela
ficção. "Eu não acho que seja possível encarar o horror do Holocausto. É como a cabeça da Medusa: você pode carregá-la num saco, mas, se olhar para ela, acaba
petrificado."
Pelos olhos do jovem György
Köves, Kertész parece ter encontrado um modo seguro -mas
não pouco doloroso- de conseguir encará-la.
Avaliação:
Texto Anterior: Inocência dolorosa Próximo Texto: Livro/lançamento - "Testamento de Pasárgada": Antologia recupera e favorece primeiras obras de Bandeira Índice
|