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São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2003

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CRÍTICA

Pelas dúvidas do olhar adolescente, narrativa se desvia do lugar-comum do Holocausto

FLÁVIO MOURA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

De quem testemunhou o Holocausto, o que menos se espera é um relato capaz de abordar a brutalidade do extermínio por um ângulo que não seja o do espanto e da indignação. Mas é desse ponto que fala o húngaro Imre Kertész, 73, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald e Nobel de Literatura do ano passado.
Romance que a editora Planeta lança no Brasil no fim de setembro, "Sem Destino" é de sua obra o livro que melhor espelha esse traço - e também o responsável pela premiação. Publicado em 1975 e valorizado somente após a tradução para o alemão, é narrado por um adolescente de 15 anos, a mesma idade do autor ao ser preso pelos nazistas.
György Köves, o protagonista, acaba de ter o pai convocado para servir o Exército em "trabalhos forçados". Responsável pelo sustento da família, consegue emprego numa refinaria e, com isso, um passe que lhe permite circular com liberdade por Budapeste.
Dois meses depois, no ônibus a caminho do trabalho, é preso com os colegas numa batida policial. Após dias detidos numa fábrica, iniciam um périplo por Auschwitz, Buchenwald e Zeitz.
"Sem Destino" é o relato do dia-a-dia nesses campos. Mais que a sordidez dos detalhes, o que impressiona é a leveza do ponto de vista. O garoto descobre aos poucos que os prisioneiros não estão ali por crimes cometidos; que nos campos nenhum eufemismo pode ser mais cruel do que "trabalhos forçados"; que as lareiras que ardem sem parar são na verdade crematórios. E nem por isso empreende uma cruzada contra a barbárie, caminho seguido pelo grosso das obras sobre o tema.
Pelo contrário: encontra modos de naturalizar o absurdo que o cerca. A guerra e a perseguição não lhe parecem um estado de exceção, mas a regra, e nela é capaz de enxergar gradações impensáveis para quem vê a brutalidade de fora. O guarda que os prende no ônibus, por exemplo, é descrito como um sujeito de olhos claros e rosto curtido pelo sol que o rapaz qualifica como "simpático". "Nós o rodeamos descontraídos, rindo como se fosse um professor numa excursão, e ele ficou no meio do grupo, reflexivo, acariciando o queixo."
Ao mesmo tempo em que intui seu destino, o rapaz vê na prisão uma oportunidade de se livrar dos laços familiares, da angústia em substituir o papel do pai, da indecisão entre viver com a mãe ou a madrasta. Nesse sentido, a detenção é uma forma de liberdade. "Ao meu redor, por todos os lados, sons alegres, gente que chapinhava, espirrava, assoprava: foi um momento feliz, despreocupado", lê-se na passagem em que toma o primeiro banho em Auschwitz - o mesmo banho que, para uma parcela dos presos, seria de gás letal, e não de água.
Disponibilidade semelhante aparece em sua relação com o judaísmo. György não cultiva espécie nenhuma de celebração de suas raízes. A dúvida adolescente fala mais alto, e ele se ressente da falta de pragmatismo das orações do rabino, além de não entender por que tem de falar com Deus em hebraico, língua que não domina.
O tempo, mais que a violência, aparece ao narrador como obstáculo a ser superado num campo de concentração. As manhãs frias ao lado da cerca de arame farpado, as duas viagens diárias ao barracão dos banhos, a distribuição da sopa rala, a contagem dos blocos, os gritos, latidos e estampidos distantes alongavam seus dias numa espera interminável.
"É horrível", diz um personagem a essa altura. Mas logo é emendado pelo narrador. Horrível não era a palavra. "Esse tédio, aliado à estranha espera: creio que esta impressão, aproximada, represente na verdade Auschwitz." A comparação entre os campos de concentração é outra sutileza digna de atenção. Ao ser transferido para Buchenwald, o menino acredita que um campo "apenas" de trabalhos forçados, em que as pessoas não sejam atiradas nas fornalhas por qualquer razão, seja quase uma bênção. Por isso afirma que logo se "afeiçoou" a Buchenwald. E adiante conclui: "A despeito das circunstâncias, foram dias dourados".
A ironia, a ausência de julgamento moral e as indagações desconcertantes produzidas pelo olhar adolescente parecem soluções capazes de dar conta da situação-limite que Kertész se propôs representar.
O tema é central em sua obra: "Fiasco", de 1988, a ser publicado no Brasil pela Planeta no ano que vem, e "Kadish por uma Criança Não Nascida", de 1990, relançado há pouco pela Imago, são desdobramentos desse enfoque. O processo culmina com seu romance mais recente, "Felszamolas" (algo como "Liquidação"), que acaba de sair na Hungria e trata da geração mais nova, que não viveu o Holocausto de maneira direta.
O alemão W.G. Sebald (1944-2001), também autor de romances que tematizam o extermínio dos judeus, costumava dizer que o episódio era inabordável pela ficção. "Eu não acho que seja possível encarar o horror do Holocausto. É como a cabeça da Medusa: você pode carregá-la num saco, mas, se olhar para ela, acaba petrificado."
Pelos olhos do jovem György Köves, Kertész parece ter encontrado um modo seguro -mas não pouco doloroso- de conseguir encará-la.


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