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biblioteca FOLHA
Lançado em 1945, livro de Orwell é crítica mordaz às ilusões revolucionárias e ao modo como o poder corrompe
"Revolução" é mais do que sátira a comunismo
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
À primeira vista, "A Revolução
dos Bichos", de George Orwell
-que chega amanhã às bancas-
, é só uma genial sátira à Revolução Russa (1917). Sua narrativa relaciona pessoas, animais e eventos às transformações ocorridas
na Rússia (ou URSS) no século 20.
Todavia, embora Orwell tenha
buscado mostrar uma época específica, sua obra pode -e deve- ser vista como uma alegoria
a qualquer revolução em que os
mais fracos tomam o poder e, em
seguida, são por ele corrompidos.
A ação ocorre na Granja do Solar, dirigida pelo Sr. Jones, que
tem sérios problemas de alcoolismo e maltrata seus animais. Publicada em 1945, no auge do regime stalinista, "A Revolução dos
Bichos" já começa com essa alusão ao final do czarismo. Afinal, o
czar Nicolau 2º era conhecido por
seu pouco apreço pela população,
preferindo falar francês a russo,
segundo relatos históricos, e tinha
uma queda pelo álcool.
Não faltam paralelos entre personagens do livro e da Revolução
Russa. O velho Major, porco sábio
e professoral, é uma mistura de
Karl Marx, famoso por ter transmitido suas crenças socialistas
por meio de textos, repletos de
conteúdo revolucionário, baseados na economia e na filosofia,
com o Lênin idealista do princípio
da revolução. É Major que espalha as sementes da revolução na
Granja do Solar, que se tornará a
Granja dos Bichos.
A exemplo de Marx, foi só após
a morte de Major que seus ideais
igualitários foram aplicados. Aí
surgem Bola-de-Neve e Napoleão, os dois porcos que comandarão o levante dos animais contra o Sr. Jones. Napoleão, partidário do totalitarismo, foi criado para representar Stálin, o mais sanguinário dos líderes soviéticos.
Bola-de-Neve tem destino similar
ao de Trótski, transformando-se,
à custa de muita propaganda, no
"inimigo da revolução".
Os cavalos Sansão e Quitéria representam o proletariado. Sem
acesso às informações, eles crêem
no que lhes conta Garganta, porco
que é uma alegoria aos sistemas
de propaganda dos regimes totalitários (um tipo de "Pravda" de
quatro patas). Sansão é a encarnação irracional do mito criado em
torno de Alexei Stakhanov, o mais
famoso trabalhador soviético por
seu empenho e por sua dedicação.
Ademais, Napoleão se cerca de
cães ferozes, "verdadeiros defensores da revolução", que funcionam como a KGB (a polícia secreta soviética) ou suas antecessoras,
não permitindo dissensão nem
oposição ao poder central.
Há ainda, na obra-prima de Orwell, várias alusões a fatos da Revolução Russa. As sempre inatingíveis metas dos planos quinquenais de Stálin são representadas
pela construção do moinho de
vento: o sonho impossível dos
moradores da Granja dos Bichos.
Os expurgos stalinistas aparecem no momento em que a sublevação dos animais está em perigo
por conta de ataques do mundo
exterior (dos homens). Assim,
inúmeros animais acabam mortos, num banho de sangue que faz
com que os outros revolucionários da granja se lembrem do Sr.
Jones -talvez como o proletariado soviético pensou nas forças de
segurança de Nicolau 2º durante
os expurgos realizados por Stálin.
Contudo, como lembra o aforismo do final da obra ("Todos os
animais são iguais, mas alguns
animais são mais iguais que os
outros"), que se torna o único
mandamento da Granja dos Bichos, a ilusão revolucionária é
breve, e o poder absoluto corrompe aqueles que o exercem.
É aí que Orwell, um socialista de
convicções democráticas, conforme sua definição, dirige sua sátira
corrosiva para qualquer sistema
desgovernado. E os porcos (classe
dominante) passam a lembrar os
homens, seus maiores inimigos
inicialmente.
A Guerra Fria transformou "A
Revolução dos Bichos" num clássico da propaganda anticomunismo, mas suas lições são mais
atuais que nunca, pois a concentração de poder, a manipulação
das informações e as desigualdades são cada vez mais graves.
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