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GASTRONOMIA
Alice de Brasília e outros privilégios
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Brasília é difícil. Para quem
está de visita, a cidade-sem-calçadas é desorientadora. É um
lugar onde a gente se perde na linha reta. A despeito das "asas" e
"blocos" e das siglas militar-futuristas (SLCS, SHIN, SHS), quem
não é de lá tem dificuldade para se
achar. Tem dificuldade para
achar qualquer coisa. Tem dificuldade até para achar onde comer.
Não que haja muita fartura. A
capital federal está longe de ser a
capital gastronômica do país. Mas
existem, sim, bons lugares onde
jantar; e não são necessariamente
os mesmos onde a cara oficial da
cidade (senadores, deputados, lobistas, alto funcionalismo) se reúne para saborear privilégios.
O verdadeiro privilégio, culinariamente falando, é ter o endereço
do restaurante Alice. Longe dos
"eixos" e "eixinhos", nas distâncias quase goianas do Lago Norte,
o restaurante fica nos fundos da
casa da proprietária. Mas não tem
nada de caseiro: um amplo anexo,
todo de madeira e vidro, construído à beira da piscina, abriga um
bom número de mesas, uma salinha de entrada, um bar e uma bela cozinha aberta. Garçons bem
treinados anunciam a entrada-surpresa (sopa de cará com linguiça), o maître sugere opções da
boa carta de vinhos (em adega climatizada) e abrem-se as cortinas
para as artes franco-italianas de
Alice Mesquita de Castro, que cozinha em dupla com o jovem chef
Eduardo Nogueira.
Na opinião de um dos comensais, que entende do assunto, o ossobuco de vitela ao molho de cabernet sauvignon estava um pouco fora de ponto. Mas ele mesmo
reconhecia que isso era como reclamar da afinação, em hertz, de
um conjunto de música barroca:
uma variação para entendidos,
com possíveis defesas teóricas. Já
o magret com molho de laranja e
acerola estava acima de qualquer
teoria, e o filé ao molho de escargots com manteiga bourguignonne celebrou, em alto estilo, o ideal
casamento das espécies. Sugestão
do dia: fagottini com molho de
funghi porcini.
O cardápio, como se vê, não é
para crianças. O Alice é um restaurante de alto cultivo, um esforço civilizatório. As sutilezas e detalhes vão desde o excelente tomate seco no couvert até as toalhas individuais no banheiro e os
palitos esculpidos. O ambiente é
bonito e confortável, sem pompa,
três qualidades raras nos restaurantes de Brasília.
Já a cara oficial da cidade dá as
caras, habitualmente, no Piantella, virtualmente um ponto turístico, onde a pompa e a circunstância da capital chegam a seu ponto
extremo. Paredes cor-de-rosa, teto de lajotas verdes, falsidades decorativas alegorizando o teatro
das mesas. Não é fácil abstrair o
ambiente, digno de alguma minissérie sobre PC Farias, mas a
gastronomia compensa o esforço.
O Piantella é um desses casos, não
tão incomuns, onde a superfície
engana, mas engana contra si: o
conteúdo, por dentro, é de verdade.
Exemplos: a temperatura do
prosecco, o bom patê de fígado.
Ótimos risotos, com destaque para o de rã e ervas frescas. Novidades delicadas, como o filé de linguado com alcachofras ao chardonnay. Tudo é legítimo, à mesa,
exceto o preço dos vinhos. Mas o
preço dos vinhos em Brasília é
sempre mais alto.
Do outro lado da rua, fica o Villa
Borghese. O nome homenageia
um lindo parque de Roma, mas o
cardápio tende para a Toscana:
perna de cordeiro assada com ervas e vinho, com tagliatelle (sem
muito brilho), cartoccio de pasta
verde, polpettone, filé com funghi. Na parede, fotos de artistas da
Globo etc.. Mas não vamos falar
de decoração.
Senão, também não seria possível elogiar muito o La Via Vecchia, outro italiano, que fica num
flat do Setor Hoteleiro Sul. A comida italiana, ali, ganha acompanhamentos tropicais, como a salada verde com bolinhas de sorvete de tapioca, queijo de coalho e
molho de maracujá picante. Idem
para o risoto de camarão, manga e
leite de coco. Espíritos menos solares vão preferir o cordeiro com
molho de cassis ou o agnolini recheado de cream-cheese, ovas de
salmão e molho de champanhe.
Há um certo novo-riquismo nessas misturas, algo que às vezes
aposta mais no efeito do que na
substância. Mas, afinal, estamos
em Brasília; e o resultado pode ser
surpreendente.
Como é surpreendente encontrar bons pães e doces e ótimos
chás na pequena pâtisserie Daniel
Briand. Não chega a ser um "salão
de chá", como diz o anúncio, que
se torna involuntariamente engraçado quando se chega ao pequeno espaço, numa quadra igual
às outras, mais uma nesse cenário
de faroeste moderno brasileiro
(ruazinha reta de comércio, casinhas baixas dos dois lados, descampado ao fundo). Neste caso,
ao menos, as mesinhas de plástico
da calçada dão para um arvoredo,
bonito à noite. O chá vem em bules de ferro. O "pain au chocolat"
é um "pain au chocolat" mesmo, a
massa saborosa e crespa, o chocolate generoso e doce e amargo.
Do Lagash, que tem fama de ser
um dos melhores árabes do país,
o que se pode honestamente dizer
é que não é um dos melhores árabes do Brasil. É um árabe simples,
sem pretensões nem excelências.
Brasília é difícil? Por muitos motivos. É um labirinto? Por muitos
motivos. Mas tem onde comer?
Por muitos motivos. Nem sempre
o caminho mais reto é o da linha
certa, dizem alguns personagens
locais. Nem sempre o caminho
mais certo é o da linha reta, dizem
os gastrônomos, passeando perdidos e satisfeitos, pelos eixos e
asas da capital do Planalto.
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