São Paulo, sexta-feira, 06 de outubro de 2000

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GASTRONOMIA
Alice de Brasília e outros privilégios

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Brasília é difícil. Para quem está de visita, a cidade-sem-calçadas é desorientadora. É um lugar onde a gente se perde na linha reta. A despeito das "asas" e "blocos" e das siglas militar-futuristas (SLCS, SHIN, SHS), quem não é de lá tem dificuldade para se achar. Tem dificuldade para achar qualquer coisa. Tem dificuldade até para achar onde comer.
Não que haja muita fartura. A capital federal está longe de ser a capital gastronômica do país. Mas existem, sim, bons lugares onde jantar; e não são necessariamente os mesmos onde a cara oficial da cidade (senadores, deputados, lobistas, alto funcionalismo) se reúne para saborear privilégios.
O verdadeiro privilégio, culinariamente falando, é ter o endereço do restaurante Alice. Longe dos "eixos" e "eixinhos", nas distâncias quase goianas do Lago Norte, o restaurante fica nos fundos da casa da proprietária. Mas não tem nada de caseiro: um amplo anexo, todo de madeira e vidro, construído à beira da piscina, abriga um bom número de mesas, uma salinha de entrada, um bar e uma bela cozinha aberta. Garçons bem treinados anunciam a entrada-surpresa (sopa de cará com linguiça), o maître sugere opções da boa carta de vinhos (em adega climatizada) e abrem-se as cortinas para as artes franco-italianas de Alice Mesquita de Castro, que cozinha em dupla com o jovem chef Eduardo Nogueira.
Na opinião de um dos comensais, que entende do assunto, o ossobuco de vitela ao molho de cabernet sauvignon estava um pouco fora de ponto. Mas ele mesmo reconhecia que isso era como reclamar da afinação, em hertz, de um conjunto de música barroca: uma variação para entendidos, com possíveis defesas teóricas. Já o magret com molho de laranja e acerola estava acima de qualquer teoria, e o filé ao molho de escargots com manteiga bourguignonne celebrou, em alto estilo, o ideal casamento das espécies. Sugestão do dia: fagottini com molho de funghi porcini.
O cardápio, como se vê, não é para crianças. O Alice é um restaurante de alto cultivo, um esforço civilizatório. As sutilezas e detalhes vão desde o excelente tomate seco no couvert até as toalhas individuais no banheiro e os palitos esculpidos. O ambiente é bonito e confortável, sem pompa, três qualidades raras nos restaurantes de Brasília.
Já a cara oficial da cidade dá as caras, habitualmente, no Piantella, virtualmente um ponto turístico, onde a pompa e a circunstância da capital chegam a seu ponto extremo. Paredes cor-de-rosa, teto de lajotas verdes, falsidades decorativas alegorizando o teatro das mesas. Não é fácil abstrair o ambiente, digno de alguma minissérie sobre PC Farias, mas a gastronomia compensa o esforço. O Piantella é um desses casos, não tão incomuns, onde a superfície engana, mas engana contra si: o conteúdo, por dentro, é de verdade.
Exemplos: a temperatura do prosecco, o bom patê de fígado. Ótimos risotos, com destaque para o de rã e ervas frescas. Novidades delicadas, como o filé de linguado com alcachofras ao chardonnay. Tudo é legítimo, à mesa, exceto o preço dos vinhos. Mas o preço dos vinhos em Brasília é sempre mais alto.
Do outro lado da rua, fica o Villa Borghese. O nome homenageia um lindo parque de Roma, mas o cardápio tende para a Toscana: perna de cordeiro assada com ervas e vinho, com tagliatelle (sem muito brilho), cartoccio de pasta verde, polpettone, filé com funghi. Na parede, fotos de artistas da Globo etc.. Mas não vamos falar de decoração.
Senão, também não seria possível elogiar muito o La Via Vecchia, outro italiano, que fica num flat do Setor Hoteleiro Sul. A comida italiana, ali, ganha acompanhamentos tropicais, como a salada verde com bolinhas de sorvete de tapioca, queijo de coalho e molho de maracujá picante. Idem para o risoto de camarão, manga e leite de coco. Espíritos menos solares vão preferir o cordeiro com molho de cassis ou o agnolini recheado de cream-cheese, ovas de salmão e molho de champanhe. Há um certo novo-riquismo nessas misturas, algo que às vezes aposta mais no efeito do que na substância. Mas, afinal, estamos em Brasília; e o resultado pode ser surpreendente.
Como é surpreendente encontrar bons pães e doces e ótimos chás na pequena pâtisserie Daniel Briand. Não chega a ser um "salão de chá", como diz o anúncio, que se torna involuntariamente engraçado quando se chega ao pequeno espaço, numa quadra igual às outras, mais uma nesse cenário de faroeste moderno brasileiro (ruazinha reta de comércio, casinhas baixas dos dois lados, descampado ao fundo). Neste caso, ao menos, as mesinhas de plástico da calçada dão para um arvoredo, bonito à noite. O chá vem em bules de ferro. O "pain au chocolat" é um "pain au chocolat" mesmo, a massa saborosa e crespa, o chocolate generoso e doce e amargo.
Do Lagash, que tem fama de ser um dos melhores árabes do país, o que se pode honestamente dizer é que não é um dos melhores árabes do Brasil. É um árabe simples, sem pretensões nem excelências.
Brasília é difícil? Por muitos motivos. É um labirinto? Por muitos motivos. Mas tem onde comer? Por muitos motivos. Nem sempre o caminho mais reto é o da linha certa, dizem alguns personagens locais. Nem sempre o caminho mais certo é o da linha reta, dizem os gastrônomos, passeando perdidos e satisfeitos, pelos eixos e asas da capital do Planalto.


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