São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2004

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"UM FILME POR DIA"

Moniz Vianna ilumina o cinema com paixão

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Para simplificar, poderíamos dizer que Antonio Moniz Vianna, 80, está para a crítica de cinema carioca como Paulo Emílio Salles Gomes (1916-77) está para a paulista.
Mas, colocado nesses termos, o paralelo entre esses dois gigantes da crítica pode reforçar uma rivalidade bairrista inconsistente.
Pois as coisas são bem mais complexas. Para começar, o paulista Paulo Emilio tinha muito mais afinidade com o cinema novo (cujo núcleo estava no Rio) do que o carioca Moniz Vianna, que aliás defendia o paulistaníssimo Walter Hugo Khouri da incompreensão e do isolamento a que estava relegado.
Esqueçamos, pois, o confronto geográfico. O fato é que, assim como Paulo Emilio formou gerações de críticos e cinéfilos com seus artigos semanais no "Suplemento Literário" de "O Estado de S. Paulo", Moniz Vianna fez o mesmo com seus textos no extinto "Correio da Manhã".
A diferença é que as críticas de Moniz Vianna eram diárias, o que justifica o título desta coletânea agora publicada, depois de décadas de relutância do velho crítico: "Um Filme por Dia".
São 76 textos, escolhidos e apresentados por Ruy Castro entre os milhares publicados por Vianna entre 1946 e 1973.
O conjunto dá uma boa idéia do interesse variado do crítico e do alcance de sua reflexão: abarca todos os gêneros, nacionalidades e categorias de produção. Do mais obscuro filme B à maior superprodução hollywoodiana, de Mario Bava a Orson Welles, Vianna submetia a um rigoroso exame todo o tipo de imagem que se movia sobre uma tela.
Ao longo da leitura, vamos percebendo um denominador comum, que é também um "parti pris", talvez o único do autor: a paixão pelo cinema. Alheio às modas, aos alinhamentos políticos e aos referendos intelectuais, Moniz Vianna avaliava o êxito ou o fracasso de um filme por sua capacidade de enriquecer e levar adiante a arte do cinema.
Foi a partir dessa perspectiva que se desenvolveram suas afinidades, antipatias e também, como ocorre com todo bom crítico, suas idiossincrasias.
De seu panteão faziam parte cineastas aparentemente tão díspares quanto John Ford (para ele, o maior de todos), Orson Welles, Fellini, Hitchcock e Buñuel.
Por outro lado, nunca engoliu o intelectualismo de Alain Resnais, a quem tachava de "neurótico", nem tampouco a pompa vazia do Stevens de "Assim Caminha a Humanidade".
Considerava o pessoal oriundo dos "Cahiers du Cinéma" (Godard, Truffaut, Chabrol) bons críticos, mas maus cineastas, e discordava de suas escolhas e escalas de valores. Via John Huston como um injustiçado, por exemplo, e não por acaso uma das mais belas críticas desse livro é a do seu "Moby Dick".
A independência de Moniz Vianna valeu-lhe o respeito mesmo daqueles a quem eventualmente criticava com dureza, como Glauber Rocha (que uma vez o ameaçou de morte). Em tempo: o crítico aplaudiu (com ressalvas) "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "O Dragão da Maldade", mas execrou "Terra em Transe": "É a obra-prima da indisciplina narrativa, o clímax da antitécnica -é o caos, ou só um disparate".
Voltando ao paralelo do início, Moniz Vianna costumava ser mais sentencioso que Paulo Emilio, mas geralmente com escrupulosa fundamentação numa considerável cultura cinematográfica, literária e estética.
Não é preciso concordar sempre com o crítico para reconhecer que sua reflexão enriquecia sobremaneira a leitura e a fruição dos filmes abordados.
Quanto maior o seu entusiasmo por uma fita, mais Moniz Vianna se estendia. Assim, certos filmes mereceram críticas de meia página de jornal, que, transferidas para o livro, ocupam às vezes dez páginas, como as de "Rastros de Ódio", de John Ford, "Freud", de John Huston, e "A Marca da Maldade", de Orson Welles.
O melhor de Vianna é sua firmeza em rejeitar lugares-comuns da crítica, como em sua emocionante defesa de "O Homem Errado", tido como um Alfred Hitchcock menor, mas que ele revela em seu esplendor de obra-prima. Em suma: a coragem de pensar com a própria cabeça e sentir com a própria alma.


Um Filme por Dia
    
Autor: Antonio Moniz Vianna
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 56 (399 págs.)



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